A Rebelião das Massas

A Rebelião das Massas

De José Ortega Y Gasset

por Marcos Heleno Junior

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Existem duas razões para esse texto despertar a admiração do leitor de hoje.  Primeiro pela capacidade de análise e visão do futuro; antecipou na década de 30, com a Europa à beira da guerra total, que um dia ela estaria unida em uma entidade supra-nacional. Em segundo lugar, pela atualidade de seu texto: o retrato que faz do mundo de sua época é o mesmo dos dias de hoje, o que mostra que estamos com os mesmos dilemas. Tirando algumas citações históricas, é difícil afirmar que não foi escrito no ano que passou.

Ortega nos apresenta o homem que passou a dominar o mundo à partir do início do século XX, o homem-massa. Não se pode entender este homem como um trabalhador ou o povo; o homem-massa está entre os intelectuais, na elite econômica, entre os mais ricos, entre os mais pobres, etc. Não se trata de uma classe, mas uma forma de ver o mundo.

A edição que tenho em mãos é da Biblioteca do Exército, e inicia com um prólogo escrito por Ortega, aos franceses, em 1937. Apresenta o século XX como a conseqüência da mais extraordinária época da humanidade,  o século anterior a este, o XIX. Condena a homogeneidade que começava a tomar conta do continente europeu e apresenta a primeira definição do homem-massa:

É o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais” (…) só tem apetites, pensa que só tem direitos e não acha que tem obrigações: é um homem sem obrigações de nobreza.”

Sua obra não é política, é anterior à política. Critica o “politicismo”, uma forma de ver o mundo em que tudo é absorvido pela política. Fala em homem, natureza, histórica, sociedade, indivíduo, coletividade, Estado, uso, direito. “A política priva o homem da solidão e da intimidade, e por isso a pregação do politicismo integral é uma das técnicas usadas para socializa-lo”.

Condena as tentativas de reformar o mundo pelas revoluções; estas rompem violentamente com a tradição sem superá-la, fadando-as ao fracasso e à violência. O que distingue o homem do animal é sua capacidade de reter memória, “romper a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango.

Aglomerações

Ortega começa com a caracterização de um fenômeno de seu tempo, e ainda mais do atual: as aglomerações. Sua descrição é desconcertante. Apresenta um curioso paradoxo: a multidão ocupa o espaço que para ela foi destinado, por exemplo, um cinema, mas esta ocupação deixa um sentimento de angústia e origina um problema dos dias atuais: encontrar um lugar. Nesta constatação, a primeira característica do homem-massa: ele não atribui a si mesmo um valor, mas se sente “como todo mundo”; não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais. Distingue-se da minoria; esta exige mais de si mesma, acumula dificuldades e deveres. Em toda classe social há uma massa e uma minoria. “A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte.”

Subida do Nível histórico e crescimento da vida

O extraordinário século XIX deixou como legado uma intensa transformação na sociedade com a rapidez cada vez maior do avanço técnico-científico. Uma das conseqüências foi que o homem médio passou a ter acesso a prazeres e utensílios inventados por homens especiais para homens especiais. Desta forma as massas emergiram para o primeiro plano da história. Gasset defende uma interpretação radical da aristocracia, afirma que a sociedade humana é sempre aristocrática por sua própria essência, “a ponto de ser sociedade na medida que é aristocrática, e deixar de sê-lo na media que se desaristocratiza.”

A vida média se desenvolve hoje numa altura superior à que se encontrava ontem”. Vive-se em uma época em que se sente que a vida é mais vida do que todas as épocas anteriores, por isso o homem atual perdeu todo respeito e atenção com o passado. Não reconhece neste um possível modelo ou norma, fazendo tábua rasa de todo o classicismo.

O retrato que Ortega faz do crescimento da vida é mais do que atual: “o conteúdo da vida do homem médio de hoje é todo o planeta; que cada indivíduo vive habitualmente todo o mundo (…) cada pedaço de terra já não está confinado a seu lugar geométrico, mas atua nos outros lugares do planeta para efeitos vitais.” É bom lembrar que na época nem se imaginava a transmissão de dados via satélite ou a internet.

Antecipou até o consumismo: “Não é fácil imaginar, desejar, um objeto que não exista no mercado, e vice-versa: não é possível que um homem possa imaginar e desejar tudo que se acha à venda.

O homem-massa

Feitas as considerações sobre a vida de sua época, Gasset começa a apresentar o homem-massa:

  1. Este homem não encontra mais nenhuma barreira social e aprende que todos os homens são legalmente iguais. A vida para o homem das épocas passadas era limitação, obrigações, dependência. Para o homem-massa é ilimitada; “futiga seus apetites que, em princípio, podem crescer indefinidamente (….) não se preocupa com nada além de seu bem-estar”.
  2. Não reconhece nenhuma instância fora dele, está satisfeito do jeito que é. “Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos”. Está encantado consigo mesmo. O homem excelente possui uma intima necessidade de apelar para uma norma além dele, superior a ele, a cujo serviço se coloca espontaneamente, exige de muito de si mesmo enquanto que o homem vulgar não exige nada.
  3. As massas intervêm em tudo, e só o fazem violentamente. Julgam-se no direito de ter opiniões sobre os mais diversos assuntos, mas sem terem feito um esforço prévio para forjá-las. Possuem um grupo de idéias dentro de si, contenta-se com elas considera-se intelectualmente completa. Não admite nada além desse repertório que formou. “Não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito”. Surge um novo tipo de homem, o que não quer dar razão nem quer ter razão, mas que mostra-se decidido a impor suas opiniões; é o direito a não ter razão. Possui idéias, mas é incapaz de formá-las. A forma de atuar é a ação direta, inverte a ordem e proclama a violência com a primeira razão. Não deseja a convivência com o que não é como ela. “Odeia mortalmente o que não é ela”.
  4. Vive num mundo de extraordinário avanço científico e tecnológico, no entanto cada vez o homem se interessa menos pelos princípios da ciência. “O mundo é civilizado, mas seu habitante não o é: nem sequer vê a civilização nele, mas a utiliza como se fosse a natureza”.
  5. O homem-massa acha que a civilização em que nasceu e que usa é tão espontânea e primigênia como a Natureza (…) Os valores fundamentais da cultura não o interessam, não são sensíveis a eles, não está disposto a colocar-se a seu serviço”. O mundo se tornou mais difícil e complexo e cada vez é menor o número de pessoas à altura desses problemas. Há algumas cabeças capazes, mas o homem-massa não quer pô-las sobre os ombros. O homem fracassa por não conseguir acompanhar o progresso de sua própria civilização. Um das coisas mais notáveis é que as pessoas “cultas” de hoje serem de uma ignorância histórica incrível, ao mesmo tempo em que a história avançou com ciência, perdeu-se como cultura.
  6. Psicologicamente ele se apresenta com uma impressão radical que a vida é fácil; afirma-se como moral e intelectualmente bom e completo, fechando-se a qualquer instância superior; e intervirá em tudo, impondo sua opinião vulgar. Comporta-se como uma “criança mimada”, pensa que pode se comportar em qualquer lugar como em sua casa. Caracteriza-se por saber que certas coisas não podem ser e, apesar disso, e por isso mesmo, fingem uma convicção contrária com seus atos e palavras. É o que chamou de “senhorzinho satisfeito”.
  7. Gasset descreve também a barbárie da “especialização”. O homem da ciências de hoje é o protótipo do homem-massa. Cada vez mais se restringe através da especialização, recluindo num campo de atuação intelectual cada vez mais estreito. A cultura integral perde força. O avanço tecnológico e a sistematização da pesquisa leva a um quadro em que ciência experimental avança com o trabalho de homens incrivelmente medíocres, a tarefa do pensamento científico torna-se mecânica pois os problema são simplificados à exaustão através da especialização. Surge o sábio-ignorante, “um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda arrogância de quem em seu campo especial é um sábio (…) Quem quiser poderá observar a estupidez com que pensam, julgam e atual hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os “homens da ciência” e é claro, além deles, médicos, engenheiros, economistas, professores, etc”.
  8. As massas precisam nortear sua vida por uma instância superior, constituída pelas minorias excelentes. Quando a massa atua por si mesma, só o faz de um modo, porque não tem outro: lincha. Ele vê o Estado como esta força superior, sabe que esta aí para assegurar sua vida; mas não tem consciência que é uma criação humana. Diante de qualquer dificuldade exige que o Estado o assuma imediatamente, que se encarregue de resolve-lo. É o maior perigo que hoje ameaça a civilização: “a estatização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado”. A sociedade passa a viver para o Estado; o homem para a máquina do governo. A sociedade se escraviza e passa a viver a serviço do Estado, toda a vida se burocratiza.

Quem manda no mundo?

A segunda parte do livro é para responder a este questionamento. Mais do que a força, a opinião pública é o grande fator de mando na humanidade. Napoleão conquistou a Espanha, mas nunca mandou nela. O mando é o exercício normal da autoridade, o qual se fundamenta na opinião pública.

Acontece que às vezes a opinião pública não existe. Uma sociedade dividida um grupos discrepantes, cuja força de opinião fica reciprocamente anulada, não possibilita a constituição do mando. E, como a Natureza tem horror ao vazio, esse espaço vazio que é formado pela ausência de opinião pública é preenchido pela força bruta”.

Ortega compara as nações aos indivíduos, à formação de uma sociedade. Da mesma forma que entre os indivíduos existe uma hierarquia natural, o mesmo deve ocorrer entre as nações. É preciso que uma nação ou grupo de nações exerça o mando da civilização, o mando baseado na autoridade, não na força. É preciso que as nações mais caóticas tenham uma direção a seguir, caso contrário ficam perdidas em seu próprio caos. O fato da Europa estar deixando o mando do mundo era uma preocupação para a humanidade, Gasset temia que sem a autoridade européia, as nações entrariam em um processo de violência interna. “Esta é a primeira conseqüência que sobrevêm quando alguém deixa de mandar no mundo: os demais, ao se rebelarem, ficam sem ter o que fazer, sem programa de vida”.

O autor não via nos Estados Unidos ou União Soviética a capacidade de substituir a Europa no mando do mundo; afirmava que não havia nada de novo nestas civilizações, eram ambas parcelas do mandamento europeu. Os Estados Unidos e a Rússia socialista eram criações muito recentes. O que a Rússia tinha de forte devia-se ao que tinha de russo e não de marxista. Os Estados Unidos foram formados pelo que “transbordou da Europa”.

Em outro ponto de vista polêmico, afirma que o princípio básico para a formação do Estado não são os fatores comuns como idioma, raça, credo ou étnico, é justamente o contrário, a vontade de superar as diferenças e construir algo maior. É através de um projeto comum, em que diferenças convivem para construí-lo, que se edifica o Estado. “O Estado começa quando grupos nativamente separados são obrigados a conviver.” É a formação do Estado Nacional que leva a uma homogeneidade de raça e de língua, e não o contrário. “Toda unidade lingüística existente num território de certa extensão é quase sempre o resultado de uma unificação política precedente.”

Alerta para o perigo do nacionalismo que considera beco sem saída por justamente ir contra este princípio nacionalizador, é exclusivista enquanto que esse é inclusivista. O princípio para formação do Estado é a superação de diferenças e não a separação em função destas.

Vejo na construção da Europa, como grande Estado nacional, a única empresa que poderá ser contraposta à vitória do ‘plano se cinco anos’“. Gasset se referia ao planejamento centralizado soviético. O tempo deu-lhe razão. Hoje temos a União Européia. 

A verdadeira questão

A Europa ficou sem moral. Não é que o homem-massa menospreze uma antiquada em favor de outra emergente, mas é que o centro do regime vital consiste precisamente na aspiração de viver sem se submeter a qualquer moral. (…) O imoralismo chegou a uma vulgaridade extrema e qualquer um se vangloria em exercita-lo (…) Se deixarmos de lado __ como já fizemos neste ensaio __ todos os grupos que representam a sobrevivência do passado __ os cristãos, os “idealistas”, os velhos liberais etc. __ não se achará entre os representantes da época atual uma única pessoa cuja atitude diante da vida não se reduza a crer que tem todos os direitos e nenhuma obrigação”.

O homem-massa carece simplesmente de moral, que é sempre, por essência, um sentimento de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação”.

Epílogo

A edição traz ainda um epílogo escrito especialmente para os ingleses onde o autor mostra sua admiração pela Inglaterra e sua contribuição para a sociedade. Lamenta o erro histórico que levou a Inglaterra a deixar sua posição de mando, um erro grave cometido no período entre-guerras, através do pacifismo.

Trata-se de uma obra fabulosa, que merece ser lida, relida e guardada para constante consulta. Não se trata de política, mas de algo muito mais profundo que a precede a própria organização social da humanidade. Foi um visionário, previu a União Européia, a explosão da violência, o consumismo, a ditadura da legalidade, o caos da descolonização. É um desastre que um quadro que pintou há 80 anos continue tão atual, e até mesmo aprofundado.

É um retrato de tempos muito difíceis para toda a humanidade.

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18 pensamentos sobre “A Rebelião das Massas

  1. Muito bom e inteligente esse texto, uma pessoa inteligente quando o lê se faz perguntas, sobre o que acabou de ler.
    Gostaria que as pessoas passassem a se questionar mais sobre esse tipo de tema.

    Obrigado e parabéns!

  2. Impressionante a atualidade desse livro!
    Hoje, ao ligarmos a tv vemos os povos do oriente se levantando como uma grande onda numa arquibancada, para retirar os líderes autoritários, exploradores, déspotas, ditadores agarrados ao poder, que não partilham as riquezas de suas terras com os filhos dela.
    Algo de novo vai surgir no mundo! Vamos aguardar e torcer para que seja ‘do bem’!
    Quando estive na faculdade na década de 70, estudamos este livro e ficamos impressionados pela atualidade, então!
    E continua impressionando!
    Obrigada por postar e comentar.
    Vou partilhar o link dessa página com meu grupo online.
    abraços, jandira

  3. Ainda não li esse livro…
    Na verdade, até ontem não conhecia sua existência; porém, lendo (e estudando, pois sou um vestibulando) sobre cultura de massas,vi que um dos destaques nesses campo é Almeida y Garret, com tal livro; e o que mais me interessou foi seu tom profético, sobre o qual também li…
    Alguém poderia me informar uma coisa? Só há versão em português luso, ou há alguma versão em português tupiniquim (sem querer ofender nossa nação)?

  4. Seu texto, apesar de carecer de revisão ortográfica e gramatical, é muito interessante. Sugiro que encarregue revisor para aprimorá-lo. A obra a que se refere é extraordinária. Parabéns.

  5. Gostaria de deixar registrado meu entusiasmo pelo texto.Também tive a oportunidade de estudar Ortega Y gasset em minha garduação na UFP no inicio da década de setenta. Revisitei-o na tese de doutorado na UPS Salamanca Espanha. Sou fã deste filósofo e inseri em minha filosofia de vida a seguinte idéia.Ortega, quem tu és?,perguntou-lhe um amigo e ele ,prontamente, respondeu.Ëu sou eu e mais as minhas circunstâncias” Desta forma, creio ser muito adequada esta discussão acadêmica. Abraços Prof. Eduardo Búrigo de Carvalho

  6. Um anti democracia como tantos outros da época, esperava que a população fosse controlada por alguns supostamente melhores (para eles mesmos) e não lutasse por algo de todos, ser antidemocrata não é a solução para a tal massa que ele define. O todos que a neurologia já colocou como base para a humanidade, para sua perpetuação, este livro é bastante enviesado e pobre em sua argumentação, mas um filho de sua época, e é bem politico sim, não admitir isso é bastante absurdo e bobo.

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