Anjos e Demônios

Boa parte da imprensa já está defendendo a estória que Lula é a opção para o diálogo com a oposição boliviana como se não existisse um fórum mundial onde Morales, Chávez e Lula fossem sócios na empreitada declarada de socializar a América Latina.

A oposição boliviana está reagindo justamente à tentativa de Evo Morales de instituir a força o socialismo em seu país. Não dá para entender como podem aceitar que o governo brasileiro seja um negociador nesta crise. Hoje mesmo o presidente do Parlamento Sul-Americano, uma inutilidade, o tal Dr Rosinha, outra inutilidade, deu apoio irrestrito ao presidente boliviano.

Só há dois presidentes na América Latina que poderiam fazer este papel, os presidentes da Colômbia e do Peru. Talvez Bacherelet, apesar de ser de esquerda não parece até agora estar associado ao Foro.

O pano de fundo é a tese furada que os autores do excelente Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano defenderam na continuação equivocada da própria obra. Haveriam dois tipos de populistas na América Latina, os vegetarianos (Lula seria um deles) e os carnívoros (Chávez é a maior expressão.). Erraram profundamente, não existe socialista vegetariano, apenas socialista em pele de cordeiro que se coloca justamente como contraponto aos carnívoros para angariar simpatias. É um engodo, genial, mas um engodo.

Armadilha de Evo

Eu bem que estava estranhando a negativa de Evo Morales à intermediação brasileira no conflito boliviano; tirando Equador e Venezuela não tem como ser mais pró-Evo do que o governo brasileiro. A coisa começa a ficar mais clara com esta notícia:

A oposição boliviana quer a participação do Brasil nas negociações com o governo do presidente Evo Morales para acabar com dias de enfrentamentos violentos que já custaram a vida de quase 30 pessoas. O governador oposicionista do departamento de Santa Cruz, Ruben Acosta, disse neste domingo que o “Brasil é uma garantia de que isso pode ter uma solução”.

A oposição caiu na armadilha montada pelo Foro de São Paulo. Jogaram Chávez na parada para que se aceitasse Lula como o mal menor. Não é. O Foro de São Paulo foi criado por duas personagens principais, Lula e Fidel. O bufão venezuelano é peça menor no tabuleiro, assim como o próprio Morales. Quem manda neste jogo, além dos dois citados, é Marco Aurélio Garcia, José Dirceu e Celso Amorim.

Acabaram de dar um tiro no pé.

Quando Juca deixa o esporte…

Para quem gosta de futebol os comentários de Juca Kfouri são imperdíveis, para o bem ou para o mal.

O problema é quando não se agüenta e resolve falar de política.

Independentemente do que se pense de Evo Morales, o presidente da Bolívia, (e este blogueiro já o criticou mil vezes pela demagógica defesa que faz do futebol na altitude), o que está em marcha por lá é um golpe.

Não tem outro nome.

Morales foi eleito democraticamente e só pode ser apeado do poder pelo voto.

O que se vê hoje, na Bolívia, se viu, 35 anos atrás, no Chile.

Sem tirar nem pôr.

E com o apoio dos Estados Unidos, mas com a diferença de que Salvador Allende não era indígena.

Os democratas no mundo inteiro devem denunciar o golpe que se opõe à vontade do povo boliviano.

É uma simplificação grosseira dos fatos comparando duas situações que pouco têm em comum.

Allende costuma ser retratado como um democrata que foi retirado do poder por Pinochet com ajuda dos malvados americanos. Foi socialista que foi eleito por estreita margem de votos e não entendeu as limitações desta situação. Quis fazer reformas profundas contra o desejo da maior parte de seu país e conduzia o Chile ao desastre. Pinochet, com apoio não só americano como brasileiro, liderou o Exército chileno para depor o presidente aliado de Moscou. Hoje o Chile está a passos de ingressar no primeiro mundo graças ao que foi construído pelo general ditador.

Justifico uma ditadura? De jeito nenhum, tudo isso poderia ser realizado por um governo democrático. O que não poderia era ser feito por Allende, um aliado de Moscou que só conseguirira levar seu país ao desastre.

Morales não compreendeu o resultado do referendo que convocou que confirmou sua presidência mas que também reconheceu a legitimidade de sua oposição. Ao invés da prudência resolveu apostar na bagunça tentando aprovar na marra uma constituição feita sem participação da oposição. A Bolívia ocupa hoje um lugar de completa irrelevância para os Estados Unidos, tentar jogar os americanos na confusão armada pelo índio cocaleiro é coisa de delinqüênte intelectual.

Juca chama os democratas do mundo para denunciar o golpe. Pois chamo os democratas do mundo para denunciar o golpe que um presidente eleito resolver fazer contra as leis de seu próprio país, usando a democracia como caminho para jogar a Bolívia de volta ao tempo do arado.

Dilema boliviano

Desde que assumiu o governo, Evo Morales tem constantemente agido contra as instituições bolivianas para implantar os ideais socialistas. Não se trata de uma ação gratuita, faz parte dos planos há muito estabelecidos pelo Foro de São Paulo criado por Lula e Fidel Castro com o objetivo expresso de instalar o socialismo na América Latina pela via democrática conforme previsto por Antônio Gramsci.

Nada de revoluções ou uso da força, o pensador italiano previu que o melhor caminho para o socialismo era a conquista da hegemonia cultural e a destruição da democracia usando as próprias ferramentas democráticas. Com raras exceções praticamente todo o continente está nas mãos do Foro onde a conquista do aparelho do estado depende da solidez das instituições.

Na Venezuela o Foro já está bem adiantado com as instituições destruídas e uma ditadura sob o véu democrático instalada. Logo atrás vem o Equador e a Bolívia. Como impedir este processo?

Na Venezuela a oposição escolheu não participar do processo democrático, não funcionou. Chávez aproveitou a ausência de qualquer oposição para assumir poderes totalitários. O Legislativo tornou-se um fantoche e o controle sobre o judiciário é total. Com a destruição da harmonia entre os poderes a democracia deixou de funcionar apesar das aparências.

Os defensores do chavismo aqui no Brasil gostam de lembrar que ele convocou um plebiscito como prova de que se trata de um democrata. O que eles não dizem é que após ser derrotado ele aprovou por lei praticamente tudo que foi rejeitado pela população.

A oposição boliviana partiu para outro caminho, o confronto. Quais as suas opções? Sua representação legislativa é ignorada, não existe mais um judiciário independente. Denunciar? Foi o que fez desde o primeiro dia do governo Morales. Foi o que a oposição venezuelana tentou fazer quando boicotou o processo democrático.

O problema é que a América Latina está tomada por aliados de Chávez e Morales, a começar pelo principal país da região, o Brasil. Foi a liderança brasileira que garantiu o venezuelano na presidência quando teve para ser deposto.

Estados Unidos? Europa? Estão se lixando para a bagunça que se formou na América do Sul. Somos irrelevantes demais para despertar qualquer interesse, contanto que a Venezuela continue fornecendo petróleo e o Brasil mantenha seu mercado consumidor aberto. Chávez não é burro, apesar de toda retórica continua vendendo seu óleo para o Império do Mal.

Funcionará a estratégia de confronto da oposição boliviana? Duvido muito. Qual seria a alternativa? Como escapar das garras do Gramscismo?

Como conseguir a liberdade diante de uma hegemonia cultural que dá suporte e proteção a um governo socialista?

Este não é um problema dos bolivianos, nem dos venezuelanos. É um problema de todos que desejam reconquistar a liberdade na América Latina. Uso o termo “reconquistar” em seu sentido pleno pois não acredito que sejamos realmente livres, nem mesmo aqui no Brasil.

A Bolívia é apenas o palco  mais visível da disputa entre a liberdade e a utopia socialista.

De volta ao tempo das cavernas

Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso

Esta não é uma frase, na verdade é um conto de Monterroso, possivelmente o menor já escrito, mas com profundos significados. Tem tudo a ver com os tempos atuais em que o socialismo ressurge das cinzas para assombrar a humanidade. Não mais aquele socialismo raivoso que produziu os gulags, os paredões cubanos, mas um socialismo disfarçado dentro da concepção gramsciana e com conotações nacionalistas.

Já que Lula resolveu começar a distribuir os lucros de uma exploração de petróleo que ainda levará uns bons anos para ocorrer, a Federação Única dos Petroleiros considerou-se no direito de pedir reajuste baseado justamente no pretenso novo tesouro brasileiro e já lançaram até um slogan: “o pré sal é nosso!”. Definitivamente o dinossauro ainda está por aí!

Não é só isso, os valentes lançaram um lista de objetivos para a entidade. Uma lista que nos remete 50 anos para trás e aposta no que não deu certo em lugar nenhum.

1. Restabelecimento do monopólio estatal do petróleo;

2. Fim das concessões a empresas estrangeiras para exploração de petróleo e gás;

3. Destinação social dos recursos gerados pela prospecção do pré-sal;

4. Fortalecimento da Petrobrás como “empresa eminentemente pública.”

Em que mundo esses caras vivem? Ah, os petroleiros são apoiados pelo MST (?!), Via Campesina(?!?), UNE e UBES. Parece que além de terras os líderes baderneiros não dispensam um bom petróleo. UNE e UBES são aquelas entidades que representam uma expressiva e barulhenta MINORIA que resolveu jogar no lixo o cérebro que receberam ao nascer. Uma espécie de anencéfalos conscientes.

Desafia a lógica tentar entender como ainda existem tantas pessoas acreditando na utopia socialista e apostando contra a realidade. Estou cansando de ver este dinossauro. Acho que vou voltar para a cama na esperança de que ao acordar ele já esteja extinto.

A imagem da perfeição (Por Demétrio Magnoli)

A China foi perfeita durante duas semanas. Bem antes da inauguração da curta era da perfeição, o governo chinês alertou a imprensa internacional contra a “politização” dos Jogos Olímpicos. Na linguagem em código compartilhada por todas as ditaduras, o alerta era uma conclamação à imprensa para que praticasse a autocensura. Com raras exceções, por amor aos patrocinadores ou sinceramente comovidos pela eficiência técnica do Estado totalitário, jornais e jornalistas do mundo inteiro se curvaram. Por um tempo fugaz a crítica cessou, abrindo passagem à perfeição.

Ela chegou na cerimônia de abertura, quando a graciosa Lin Miaoke, de 9 anos, com marias-chiquinhas e um vestido vermelho, supostamente cantou Ode à Pátria. O evento era uma fraude, como logo depois se soube por uma inconfidência de Chang Qigang, o diretor musical da cerimônia. A voz oculta atrás da imagem da perfeição pertencia a Yang Peiyi, de 7 anos e com um dentinho torto.

“A razão por trás disso é que precisamos colocar os interesses do país em primeiro lugar”, justificou Qigang. Os “interesses do país” foram definidos na hora derradeira por um integrante do Politburo do Partido Comunista Chinês (PCC), que assistiu ao ensaio final e concluiu que a garotinha imperfeita não devia representar a pátria perante a audiência do planeta. A imprensa relevou o ato do poderoso dirigente anônimo, qualificando-o, no máximo, como um episódio de ocultação de informação. Mas o nome disso é eugenismo e o gesto expressou uma dupla lealdade: às origens do moderno movimento olímpico e à tradição identitária do Estado chinês.

O educador Zhang Boling (1876-1951) fundou, em 1904, o Colégio Tianjin Nankai, um centro preparatório da elite chinesa por onde passaram, entre outros, os primeiros-ministros Chou En-lai e Wen Jiabao. Sob a influência das public schools da Inglaterra vitoriana, ele instituiu a educação física na sua “Família de Escolas Nankai”, lançou as bases do Comitê Olímpico Chinês e delineou um programa nacional: “Uma grande nação deve primeiro fortalecer a raça, uma grande raça deve primeiro fortalecer o corpo.”

Não havia originalidade, mas importação, no programa de Boling. O inglês Francis Galton, primo de Charles Darwin, cunhara em 1883 o termo eugenia e defendia a regulamentação dos matrimônios em razão das virtudes e dos defeitos hereditários dos casais. Nos EUA, inspirado pelas idéias de Galton, Theodore Roosevelt instituiu uma Comissão de Hereditariedade com a missão de estimular o aperfeiçoamento físico e intelectual da raça. Leis de esterilização foram passadas em alguns Estados americanos a partir de 1907, enquanto a Suécia e a Suíça conduziam programas oficiais eugenistas. Sob a presidência de Leonard Darwin, filho do célebre naturalista, reuniu-se em Londres, em 1912, a Primeira Conferência Internacional de Eugenia. Quatro anos depois, Madison Grant publicaria The Passing of the Great Race, obra seminal para o nazismo, que inseria o eugenismo numa moldura racial.

Pierre Frédy, o barão de Coubertin, morreu em 1937 e foi enterrado em Lausanne. Seis meses depois, num ritual macabro de exumação, seu coração foi extraído, transportado e enterrado em Olímpia, o lugar das antigas Olimpíadas, numa cerimônia à qual assistiu seu amigo nazista Carl Diem. Um ano antes, nos Jogos de Berlim, com o apoio de Joseph Goebbels, Diem inventara, e Leni Riefenstahl filmara, o ritual da passagem da tocha olímpica. A inovação dos chineses para os Jogos de Pequim consistiu em fazer da segunda tumba de Coubertin a destinação inicial do percurso da tocha.

“Os jovens de todo o mundo” prepararão o caminho para “aperfeiçoar a raça humana”. Coubertin inaugurou o movimento olímpico sob o influxo dos seus entusiasmos complementares pelo eugenismo e pela educação física. Como tantos conservadores da época, ele rejeitava a utopia socialista, mas compartilhava com seus arautos o desprezo pelo individualismo, com uma crença profunda no Estado e uma fé inquebrantável no poder das técnicas modernas. A escala da tocha chinesa na tumba espiritual do pai das Olimpíadas modernas exprimiu mais que um simbolismo gratuito: o site do Comitê Olímpico Chinês descreve o seu Programa Nacional de Condicionamento Físico como uma ferramenta para “promover atividades esportivas de massa, aperfeiçoando o físico do povo e impulsionando a modernização socialista do país”.

Zhang Boling, tanto quanto Coubertin, poderia assinar o núcleo da sentença anterior. Mas o educador modernista era apenas um elemento num processo maior de infusão de idéias ocidentais. No outono do Império do Centro, um tempo de crise e decadência, quando se rotulava a China como o “homem doente da Ásia”, intelectuais reformadores introduziam na história chinesa um conceito nacionalista de fundo racial e um conceito racial de inspiração eugênica. O mais brilhante entre eles, Liang Qichao (1873-1929), postulou que os chineses Han formavam uma etnia especial, e não apenas a coletividade mitológica dos descendentes do Imperador Amarelo ou o fluido conjunto dos herdeiros culturais da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). Esse novo paradigma serviu como alicerce para um projeto de reconstrução nacional baseado na supremacia Han que empolgou tanto os nacionalistas quanto os comunistas.

Há um novo ciclo de modernização em curso na China e uma política externa de “ascensão pacífica” que se nutrem da idéia de restauração das glórias passadas do Império do Centro. A elite burocrática de “comunistas de mercado” do PCC bebe nos chafarizes intelectuais construídos por reformadores como Liang Qichao e Zhang Boling e promove um renascimento nacionalista. O triunfo no quadro de medalhas e a exibição de Lin Miaoke, o “anjo sorridente”, na cerimônia de abertura olímpica constituem declarações políticas dirigidas ao público interno e ao mundo. Imagens da perfeição.

(*) Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br