Mark Lilla e a Mente Naufragada

Terminei de ler A Mente Naufragada. Algumas notas:

  1. O autor parte da idéia de reacionário, que seria aquele que tem uma utopia no passado. Ou seja, enquanto o revolucionário deseja criar uma utopia, o reacionário acha que ela já existiu e depois o mundo se desviou do caminho.
  2. Por isso ele age como um náufrago, que navega em um rio vendo destroços do navio que é a própria civilização destruída.
  3. Ou seja, para o reacionário vivemos em uma época de decadência pois em algum momento cometeu-se um grande erro e a civilização, pelo menos a ocidental, se desviou de seu rumo.
  4. Inicialmente ele analisa três autores que apesar de não serem reacionários, tiveram sua idéias assimiladas por correntes reacionárias, oriundas da direita conservadora americana.
  5. Apesar de abundarem estudos sobre a mentalidade revolucionária, faltariam estudos sobre a mentalidade reacionária, ou seja, da mente naufragada. Lilla se propõe a estimular estes estudos.
  6. Acho que o maior talento do Lilla é de resumidor de livros. Praticamente ele passa do resumo de um livro para outro, com alguns comentários seus.
  7. No fim, ele conclui, sem dar nenhuma evidência, que o maior perigo hoje são os grupos reacionários, meio que deixando entender que a mentalidade revolucionária está em completa decadência. E que, inclusive, grupos de esquerda, desiludidos com o fracasso do socialismo, estão repaginando idéias reacionárias para manter os movimentos vivos.
  8. O livro tem pequenos estudos interessantes, como o feito sobre São Paulo que o coloca dentro de uma tradição revolucionária, sendo uma espécie de Lenin para Jesus (Marx). Felizmente Lilla discorda desta visão, apenas aponta como um exemplo da esquerda utilizando um mito da tradição para criar um mito próprio.
  9. Ele critica a utilização do passado, e da criação de mitos do passado, para justificar um projeto de futuro, mesmo que seja para restaurar um passado que nunca existiu, como é o caso do reacionário.
  10. O problema é que levando ao limite, qualquer coisa boa que já tenha existido no passado e seja referenciada como algo perdido, seria classificado por Lilla como mentalidade reacionária. E essas coisas existem! Nem tudo é mito e invenção para justificar projeto de poder.
  11. Sobre a mentalidade reacionária em si, João Pereira Coutinho já tinha chamado atenção para o problema em seu livro sobre o conservadorismo.

Cem Anos de Solidão: superestimado?

Terminei de ler Cem Anos de Solidão. Minhas notas:

  1. Sobre realismo fantástico, sou bem mais Borges. Nos contos do argentino, elas tem uma função na estória. Em Cem Anos, parece mais um exercício de futilidade.
  2. A concepção da obra é excelente. Pena que não foi Érico Veríssimo a realizá-la.
  3. Houveram capítulos que me interessaram, mas na maior parte não me conquistou. Uma pena.
  4. O Coronel Aureliano é o melhor personagem. Também é interessante a matriarca da família, Úrsula.
  5. Agora que penso, será que Gabriel leu O Tempo e o Vento? Tem muitas semelhanças.
  6. O que mais chamou-me atenção no livro foi a completa ausência de Deus na estória. Nenhum personagem tem relação com o transcendente, de nenhuma forma. Não sei se o autor pensou nisso, mas faz todo o sentido. Sem Deus, o homem se entrega a toda sorte de falsos ídolos. No livro estes ídolos aparecem na luxúria, desejo de poder, política, fascinação com o dinheiro, com o misticismo, ciências, médicos imaginários. Ou seja, sem Deus o homem não consegue se conectar ao outro e nem ser feliz.
  7. O mundo sem Deus é o mundo do eterno retorno e do homem como prisioneiro do destino. É o que acontece em Cem Anos. Os arcos se repetem, o que é acentuado pela repetição dos nomes.
  8. Se o livro é também uma alegoria sobre a América Latina, como dizem, então faltou um elemento primordial para entender a história da região: o catolicismo de seu povo. Nenhum dos personagens do romance tem fé.
  9. Não vou dizer que o livro é ruim, mas confesso que me decepcionei um pouco. Não o leria novamente.

Crônicas

Há um lugar comum que crônicas são textos leves sobre o cotidiano. Muitas vezes está correto, mas nem sempre; pode ser profundo também; pode ser bem triste.

Esta semana li e estudei uma crônica do Nelson Rodrigues. Faz parte de um conjunto que crônicas que escreveu sobre suas próprias memórias. A crônica que li, que ficou conhecida como A Menina, mas que não recebeu título do Nelson (é apenas a número 10 de seu livro de memórias), trata do nascimento de sua filha Daniela. É genialidade pura e destrói todo este lugar comum de texto leve sobre o cotidiano.

Obrigado ao professor Rodrigo Gurgel por tê-la apresentada em seu curso.


Para quem gosta de literatura, os cursos do professor são impagáveis. Confira em sua página.

 

 

 

Yuval Harari: algumas considerações

Ontem escutei um podcast do Martim Vasquez da Cunha e Rodrigo Constantino sobre Yuval Harari. Quem me apresentou o historiador israelense foi minha orientadora de mestrado, uma fã. Li Sapiens e depois assisti sua entrevista no Ted Talks. O programa foi interessante pois me permitiu uma visão das idéias principais de Yuval. Na época, fiz uma nota no Evernote sobre o que entendi serem estas idéias e minha reflexão inicial sobre elas.

Resgatei a nota do evernote e divido com vocês:

Entrevista no Ted Talks: 2016

Idéias:
1. Nos acostumamos com a idéia que a felicidade seria garantida com a globalização econômica e a liberalização política. Esse modelo é uma mentira pois não pode coexistir as duas coisas.
2. A política tem que se tornar global para se tornar compatível com a globalização econômica. Não há como retornar a economia para o nível nacional-local.
3. Os problemas atuais são globais.
4.Os dois grandes problemas da humanidade hoje são:
–  mudanças climáticas
– ruptura tecnológica
5. A tecnologia é a grande ameaça ao emprego e não a competição entre os países
6. Não existe uma narrativa cósmica para a existência do homem. O grande objetivo da humanidade deve ser vencer o sofrimento.
7. Toda identidade é falsa pois é baseada numa ficção (mito, religião ou ideologia)
8. É necessário um governo global para lidar com essas ameaças.
9. Esse governo não se parecerá com uma democracia dinamarquesa. O provável é que se pareça mais com o antigo império chinês, onde uma governança forte terá que impor a solução dos problemas globais. É um preço que se deve pagar pois a alternativa causará mais sofrimento.
10. A grande divisão da política atual, portanto, é entre globalismo e nacionalismo. Conceitos de direita e esquerda estão ultrapassados.
11. Vivemos a melhor época da história.
12. Abandonar as narrativas míticas é sinal de progresso.
13. Não há uma visão clara de como deve ser a governança global, mas ela é necessária.

Meus comentários
1. Yuval ignora o aumento do poder centralizado no último século. Parece que os governos se tornaram mais democráticos e liberais e o fracasso atual se deu pelo enfraquecimento dos governos e não por sua excessiva intervenção.
2. Será mesmo que a globalização econômica não pode conviver com o local? Por que é preciso um nível superior aos estados para regular a economia? Não se pode retomar as negociação bilaterais?
3. Não estou convencido que os problemas principais são globais.
4. Não estou convencido do problema das mudanças climáticas. Em Sapiens, Yuval argumenta que toda mudança climática e ecológica, mesmo na pré-história, foi causada pelo homem.
5. Não estou tão seguro que a tecnologia permitirá ao homem criar vida (e se tornar Deus)
6. Estamos chegando ao ponto que não será mais possível a substituição de emprego? Até agora sempre foi possível abrir novos caminhos. Mas o ponto é válido e a dúvida é real.
7. Sobre o objetivo do homem ser vencer o sofrimento, isso remete a palestra do Peter Kreeft sobre o sentido do sofrimento. Não é possível retirar o sofrimento deste mundo.
8. Mitos, religião e a própria ideologia possuem mais de verdade do que mentira. Acho que Voegelin está correto neste ponto de considerar estas narrativas como símbolos compactos da transcendência.
9. Não é possível concordar com Yuval e ao mesmo tempo crer na transcendência. Seu mundo é material e não há nada mais. Ele propões o fim da religião.
10. Ele não sabe direito como será o governo global, mas defende que é necessário. Isso me parece perigoso.
11. Algumas soluções podem ser necessárias ao nível global, mas é preciso um governo para impor-las? A que preço?
12. Para quem acredita no materialismo, não há dúvida que vivemos na melhor época da história. Viva o progresso!
13. Abandonar as narrativas é abandonar a verdade. Corresponde a rebaixar o homem ontologicamente, se isso for possível. Pois me parece que Yuval propõe, novamente, disfarçada, uma religião da humanidade.
14. Dificilmente eu encontraria um pensador que tivesse uma oposição tão diferente da minha quanto Yuval. Acho que concordo mais com Marx do que ele.

Leituras do Dia: Zweig e Ortega

Comecei hoje a ler dois livros.

O primeiro é uma biografia do Ortega y Gasset, de Gonzáles Serrano. O autor chama atenção, nas páginas iniciais, para a crítica de Ortega às generalizações, que sempre implica em um erro de perspectiva e, principalmente, ao erro de achar que podemos ter uma fórmula aplicada a cada situação particular. Justamente aí está o problema de tentar definir um conservador pelas teses que acredita: a principal delas é não acreditar que possa existir uma tese universal que seja válida em todas as situações. Diante de um problema real, um conservador tem que parar, estudar a situação particular, para tentar encontrar uma solução com base no bom senso. Justamente o contrário do pensamento de esquerda que vai querer aplicar um dos seus dogmas independente do caso real, como mostra o caso do menino Alfie na Inglaterra. Aplicou-se uma receita geral a uma caso particular sem levar em conta seus aspectos próprios, como a oferta do Vaticano de tratar o menino e a vontade dos pais.

El desarrollo de la vida no permite fórmulas mágicas, concepciones puramente racionales que puedan ser aplicadas a cada caso en particular.

O segundo livro é uma coleção de 12 ensaios do Stephan Zweig chamada Momentos Estrelares da Humanidade. A concepção é interessante. Zweig defende que a maior parte da história é composta por horas desinteressantes, que culminam em alguns momentos decisivos, que impactam profundamente a história. Não que nada aconteça nestes períodos, pelo contrário. Estes acontecimentos pontuais concentram um longo desenvolvimento que culminam em uma decisão, uma ação ou mesmo não ação.

O primeiro ensaio é sobre Cícero e Zweig ressalta que ao ser exilado por Julio César, ele ganha o necessário distanciamento da vida pública e pode se voltar para si mesmo e refletir sobre sua vida e as coisas que realmente importam, os acontecimentos particulares. Lembrei-me da derrota eleitoral de Churchill em 1945, que lhe permitiu refletir sobre os acontecimentos da II Guerra Mundial. Acho que Deus age nestas horas para permitir o exílio desses grandes espíritos, beneficiando todos nós com a organização dos pensamentos que muito nos ajudam posteriormente.

Camões: Jacó e Raquel (Soneto 29)

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

A Beleza Salvará o Mundo?

A Beleza Salvará o Mundo?

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Vivemos uma época de guerra cultural, de conflitos ideológicos entre visões de mundo contrastantes, todas pretendendo  representar a verdade e a bondade. Por isso é tão difícil discutir na atualidade; não há um terreno comum para que se busque convergências e se entenda a divergência. Tudo é uma guerra de conversão, seja de infiéis ou ignorantes.

Para Gregory Wolfe, essa guerra não será resolvida pelo poder da argumentação ou pela imposição da realidade. A única possibilidade de salvação desse conflito sem tréguas é através de uma dimensão que foi rebaixada à auxiliar destas forças em conflito, a dimensão da beleza. Por isso, Wolfe foi buscar na frase de Dostoievsky a insipração de sua tese: “a beleza salvará o mundo”.42962974

Wolfe parte de dois pontos de partida interessantes para desenvolver sua argumentação. O primeiro foi a teoria do padre jesuíta John O’Malley expressa no livro “Four Cultures of the West”. Há quatro grandes culturas em permanente iteração no ocidente: a cultura profética dos religiosos,  a cultura acadêmica/profissional dos intelectuais e cientistas, a cultura humanista de escritores e poetas, e a cultura artística de pintores, escultores, e etc. Essas culturas possuem pontos de contato e muitas vezes se completam; mas muitas vezes travam batalhas.

A segunda teoria apropriada por Wolfe é a dos três transcendentais da filosofia clássica, especialmente em Aristóteles. São três os bens supremos: o bom, o belo e a verdade. Mais que isso, são expressões de uma mesma realidade. Os três transcendentais orientam a vida humana. São bens em si mesmos, não são caminhos para obter outro bem.

Wolfe faz então a conexão das duas teorias: a cultura profética relaciona-se com o bom; a acadêmica/profissional com a verdade; a humanística e artística com o belo. Uma sociedade será harmônica à medida que estas três dimensões (e quatro culturas) também o sejam.

E o que vemos na modernidade? Ideólogos, à esquerda e à direita, que se colocam como profetas da bondade ou donos do conhecimento, relegando o belo a uma função auxiliar nas guerras culturais que promovem. Trata-se de um rebaixamento da arte.

Apesar de sua origem conservadora, Wolfe se afastou do movimento conservador norte-americano por entender que este se desconectou com a realidade ao declarar que qualquer arte ou literatura contemporânea é inferior e desprezível. Eles se fecharam ao belo e transformaram a cultura em um museu, esquecendo que a posição conservadora é de uma cultura viva, sempre se renovando.

Wolfe dedica-se a entender o humanismo e a arte a partir de sua relação com as religiões tradicionais, particularmente a cristã, retomando o entendimento do humanismo cristão. Ele não faz apologia de autores e obras que se limitam a fazer pregação, repetindo o erro da ideologia. A arte deve ser uma expressão da condição humana, relacionando-se como o bom e a verdade, mas mostrando o homem em sua realidade. Um humanista cristão mostrará os paradoxos e as dúvidas existenciais de uma realidade que o homem não compreende totalmente mas é convidado a aceitar.

A partir dessas idéias, Wolfe apresenta pequenos ensaios sobre escritores, poetas e artistas que expressam essas ligações entre os três transcendentais e as culturas correspondentes. Ele apresenta uma alternativa para as engessadas fórmulas de crítica, a maioria oriunda das universidades, que dominam a cultura a ponto de sufocá-la. Entender a arte como expressão do belo, mas conectada ao bom e à verdade é a chave para contemplar a beleza e seu papel fundamental para o desenvolvimento da imaginação, uma faculdade do espírito essencial para compreender a realidade. Como ressalta Wolfe:

Padre O’Malley me ajudou a ver porque me tornei um defensor da beleza como um agente necessário para tornar os apelos da verdade e bondade significativos.

Para concluir, vale a pena reproduzir um trecho de um poema de Milosz, que Wolfe usa para terminar seu preciso livro:

E quando as pessoas deixarem de acreditar que há bem e mal,

Somente o belo os chamará e salvará,

Para que ainda saibam como dizer: isto é verdadeiro e aquilo não.

Czeslaw Milosz

Tzvetan Todorov (1939-2017)

Tzvetan Todorov c John Foley Opale

Deixou-nos hoje um verdadeiro intelectual, o búlgaro Tzvetan Todorov, que conheci a partir das aulas do Rodrigo Gurgel.

Dos três livros que li dele, o que mais me impactou foi o breve A Literatura em Perigo. Nele, Todorov mostra os três grandes monstros que estão destruindo a literatura e corromperam seu estudo nas escolas: o formalismo, o solipsismo e o niilismo. Nada é mais importante na literatura do que o sentido das obras, justamente o que é negligenciado pela análise crítica atual e pelos professores, até porque a maioria não é capaz de entender as obras que estudam. 

Que descanse em paz!

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. 

Tzvetan Todorov

A Literatura em Perigo