A Elegância do Ouriço

Fazia tempo que não me divertia tanto com um livro de ficção!

Muriel Barbery conseguiu montar um mini cosmos interessantíssimo em um prédio residencial de classe média alta em Paris. A personagem central é Renée, a concierge do edifício. Rude e retraída, na verdade é ume mulher de meia idade culta, mas que esconde sua verdadeira natureza para não se incomodada pelos moradores.

É um romance filosófico, onde tanto Renée quanto uma jovem de 12 anos, Paloma, que planeja o próprio suicídio, refletem sobre as pessoas e as situações que testemunham. A vida das duas correm quase em paralelo até que se cruzam na parte final, graças a um terceiro personagem que se muda para um apartamento que vagou, o viúvo japonês Ozu.

Há cenas memoráveis como o primeiro encontro de Ozu com Renée, em que ele percebe que há algo de errado com a concierge ou o processo um tanto caótico que Mercedes empurra Renée para um jantar. Bem narrado e muito espirituoso, A Elegância do Ouriço merece a visita.

Um livro muito interessante, que nos conquista desde as primeiras páginas e nos faz pensar muito na vida, arte, filosofia e o que importa realmente no meio do caos e da feiura que infelizmente nos acostumamos.

Conto da Semana: The Enduring Chill (Flannery O’Connor)

Asbury retorna de Nova Iorque para a fazenda da mãe, no sul americano, para morrer. Aos 25 anos, está com uma doença incurável, coisa que a mãe se recusa a acreditar e insiste em chamar o Dr Block, típico médico de interior. “Minha doença está acima da capacidade dele”, diz o moribundo.

Ele é um escritor fracassado que vê na morte trágica sua forma de ter o fim de um poeta. Já que não tem o conteúdo, o talento, fia-se na forma, emular a vida de um poeta, o que já demonstra que sua doença está realmente acima da capacidade do doutor, é espiritual.

Tanto o Dr Block quanto o estranho padre jesuíta que o jovem chama para irritar sua mãe e ter uma conversa intelectual, são formas como a graça aparece para Asbury. O padre ao invés de jogar o jogo proposto pelo rapaz lhe diz poderosas verdades: ele tem que pedir pela graça para recebê-la. No fundo, está dizendo que ele precisa se abrir para a realidade espiritual.

No fim, ma surpresa que coloca Asbury diante de sua própria finitude e tendo que escolher como viverá o resto de sua vida.

Mais uma profunda reflexão de Flannery sobre a graça e a forma como ela nos toca, e como a recusamos em função das coisas do mundo.

Uma nota sobre Flannery O’Connor

Começo a achar que Flannery foi a maior contista que já existiu, maior até que Borges e os russos.

Ela vai na profundeza de nossa alma doente para mostrar até onde chega a condição humana. E o faz com maestria, com imagens belíssimas.

E fez tudo isso antes dos 40! Infelizmente o lúpus a levou aos 39. Até onde ela poderia ter ainda chegado?

Talvez Deus tenha concluído que já era suficiente. Que era até onde o homem do século 20 poderia ouvir sem se desmoronar de vez.

3 Ensaios diversos: Carpeaux, Chesterton e Coutinho.

Hoje, aproveitando o feriado, li 3 ensaios diversos, de 3 autores diferentes, todos bem acima da média. Coincidentemente, 3 autores com sobrenome iniciados pela letra “c”.

  1. A Fronteira (Otto Maria Carpeaux)

Analisando a obra de Rimbaud, Carpeaux nos apresenta seu genial entendimento sobre a poesia. O poeta é aquele que vive na fronteira entre o dizível e o indizível, entre o imanente e o transcendente. Justamente porque não conseguimos traduzir em palavras este conhecimento a poesia nos parece tão incompreensível. É a poesia que julga o mundo e não o contrário. Se o mundo a entendesse, não seria poesia. Sensacional.

2. Sobre o críptico e o elíptico (Chesterton)

Se pudesse, eu emoldurava o ensaio inteiro. Analisando o jornalismo de seu tempo, Chesterton faz um retrato pujante do jornalismo atual. O que o destrói, e ele era um jornalista, é a pretensão, a soberba do jornalista que se acha superior aos seus leitores e se coloca em uma espécie de cruzada para educar as massas. Uma lástima que só poderia chegar onde chegou nos dias de hoje, no total descrédito.

3. A Outra (João Pereira Coutinho)

De vez em quando, no meio de sua crítica cultural afiada, Coutinho nos presenteia com pequenas ficções em forma de crônica. Neste, um herói anônimo espera duas garotas para mostrar a cidade do Porto, mas apenas uma aparece, justamente a que não queria. Tentando fazer o dia perdido passar rápido, ele recebe uma merecida lição. Tem uma certa ligação com um ensaio que escreveu sobre o filme Marty (1955), que trata justamente da dignidade dos feios.

A voz dos servos

Sempre que se fala em dar voz aos mais humildes, aos pobres ou mesmo os servos, imagina-se discursos contra a exploração. Afinal, o que mais eles poderiam nos dizer, não é? Essa literatura de protesto encontramos por todos os lados, ainda mais quando o marxismo tomou o imaginário de muitos artistas.

Mas será só isso que um servo tem a nos dizer? Um escritor russo do século XIX achava que não. Que se prestássemos atenção no que eles tinham a nos dizer aprenderíamos muito sobre a vida e as coisas que realmente importam.

Em Memórias de um Caçador, Ivan Turgueniev utiliza das caçadas de um narrador aristocrata para dar voz a diversos personagens humildes que ele encontra pelo caminho. Um exemplo é o conto Lgov, nome de um lago onde 4 personagens vão caçar patos. O narrador, seu caçador oficial (Yermolai), um caçador jovem que encontram pelo caminho (cujo queixo era preso por um lenço pois tinha sido atingido por um tiro acidental) e um velho pescador.

Boa parte do conto é o narrador escutando pacientemente a história de vida do velho, sob protestos de Yermolai, que não vê nenhum proveito em escutar uma pessoa tão simplória. Eles terminam virando o barco e retornam, guiados por Yermolai, que segura os patos mortos por uma corda pela boca. A ilustração abaixo mostra o momento do retorno.

São personagens vivos, que nos despertam a curiosidade sobre os mistérios da vida humana. Verdadeiras pinturas escritas.

Dois tipos de contos

O crítico literário Harold Bloom defende que existem basicamente dois tipos de contos, representados por dois autores: Tchekhov e Borges.

Tchekhov é o arquétipo dos contos que tem por base a realidade que apreendemos pelos sentidos. Eles tratam essencialmente deste mundo, do chamado mundo material.

Borges trata do mundo fantástico, de um mundo que está além da realidade material, mas que termina por invadi-la. Nas palavras de Bloom, a realidade cede a este mundo fantástico.

Eu acrescentaria que ambos os mundos tratados são igualmente realidades. A primeira é o que chamamos de realidade imanente, tão bem retratada pelo russo. A segunda, abordada por Borges, muitas vezes por símbolos fantásticos, é a realidade transcendente. Como se Borges desse um passo a mais que Tchekhov, penetrando em uma esfera de realidade diferente, como faz Shakespeare em suas peças.

Para cada pessoa vai agradar mais o estilo de um ou do outro, mas compartilho com a conclusão do Bloom: para que escolher? Por que não apreciar os dois tipos básicos de contos?

Entre Tchekhov e Borges, fico com os dois.

E você, leitor, qual tipo prefere?

Tchekhov

Borges