Rublev e o ícone da trindade

Andrei Rublev foi um artista russo que pintou vários ícones maravilhosos no início do século XVI. Há toda uma teoria sobre os ícones, que tem muito mais a ver com o sagrado do que as belas pinturas do renascimento, como as de Michelangelo e Da Vinci, mas fica para outro texto.

Aliás, sobre Rublev recomendo o clássico do Tarkovisky.

Um dos ícones pintados por ele é esse em que retrata a trindade, centro da fé cristã (o Deus que ao mesmo tempo é três). Uma explicação detalhada sobre o significado da obra encontra-se aqui.

Os Ícones de Rublev

Em 2002, o então Cardeal Joseph Ratzinger, escreveu um discurso chamado No Encontro com a Beleza, onde ele faz uma belíssima reflexão sobre o papel da beleza na revelação Cristã. Ainda vou falar muito sobre este texto, mas no momento chamo atenção para uma breve referência que ele faz.

Trata-se do pintor russo medieval Andrei Rublev, que viveu nos séculos XIV e XV. Rublev ficou famoso por seus ícones cristãos, que decoravam as igrejas bizantinas. Ratzinger o cita como um dos grandes exemplos de beleza, que transcende os padrões estéticos da Grécia pois nos abre para uma nova realidade, uma ligação com o que está além.

Tem um filme sobre Rublev que está na minha fila para assistir faz tempo. Acho que chegou a hora. Sempre procuro obedecer estas coincidências que a vida nos coloca. Muitas vezes é uma intervenção divina.

Batismo, Sec XV

Olympia, de Manet

Essa pintura de Manet é citada por Julio Cortázar no capítulo 116 do romance O Jogo de Amarelinha. Em uma digressão, ele comenta a visão de um crítico de arte de que Manet teria prescindido do realismo, da ação, da visão moral para ressaltar a beleza plástica. Com isso, sem saber, ele teria se saído da modernidade para ingressar na Idade Média.

Na digressão, usando seu alter ego no romance, Cortázar diz que não se trata de um anacronismo ou retorno no tempo, mas de uma concepção que a história não é absolutamente linear, que há tempos que correm em paralelo. Os grandes artistas são capazes de transitar de um tempo para outro, fugindo da escravidão de sua própria época. Neste sentido, a grande arte é libertadora, pois permite entrar em tempo fora do tempo, onde se encontra o verdadeiramente humano.

A Beleza Salvará o Mundo?

A Beleza Salvará o Mundo?

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Vivemos uma época de guerra cultural, de conflitos ideológicos entre visões de mundo contrastantes, todas pretendendo  representar a verdade e a bondade. Por isso é tão difícil discutir na atualidade; não há um terreno comum para que se busque convergências e se entenda a divergência. Tudo é uma guerra de conversão, seja de infiéis ou ignorantes.

Para Gregory Wolfe, essa guerra não será resolvida pelo poder da argumentação ou pela imposição da realidade. A única possibilidade de salvação desse conflito sem tréguas é através de uma dimensão que foi rebaixada à auxiliar destas forças em conflito, a dimensão da beleza. Por isso, Wolfe foi buscar na frase de Dostoievsky a insipração de sua tese: “a beleza salvará o mundo”.42962974

Wolfe parte de dois pontos de partida interessantes para desenvolver sua argumentação. O primeiro foi a teoria do padre jesuíta John O’Malley expressa no livro “Four Cultures of the West”. Há quatro grandes culturas em permanente iteração no ocidente: a cultura profética dos religiosos,  a cultura acadêmica/profissional dos intelectuais e cientistas, a cultura humanista de escritores e poetas, e a cultura artística de pintores, escultores, e etc. Essas culturas possuem pontos de contato e muitas vezes se completam; mas muitas vezes travam batalhas.

A segunda teoria apropriada por Wolfe é a dos três transcendentais da filosofia clássica, especialmente em Aristóteles. São três os bens supremos: o bom, o belo e a verdade. Mais que isso, são expressões de uma mesma realidade. Os três transcendentais orientam a vida humana. São bens em si mesmos, não são caminhos para obter outro bem.

Wolfe faz então a conexão das duas teorias: a cultura profética relaciona-se com o bom; a acadêmica/profissional com a verdade; a humanística e artística com o belo. Uma sociedade será harmônica à medida que estas três dimensões (e quatro culturas) também o sejam.

E o que vemos na modernidade? Ideólogos, à esquerda e à direita, que se colocam como profetas da bondade ou donos do conhecimento, relegando o belo a uma função auxiliar nas guerras culturais que promovem. Trata-se de um rebaixamento da arte.

Apesar de sua origem conservadora, Wolfe se afastou do movimento conservador norte-americano por entender que este se desconectou com a realidade ao declarar que qualquer arte ou literatura contemporânea é inferior e desprezível. Eles se fecharam ao belo e transformaram a cultura em um museu, esquecendo que a posição conservadora é de uma cultura viva, sempre se renovando.

Wolfe dedica-se a entender o humanismo e a arte a partir de sua relação com as religiões tradicionais, particularmente a cristã, retomando o entendimento do humanismo cristão. Ele não faz apologia de autores e obras que se limitam a fazer pregação, repetindo o erro da ideologia. A arte deve ser uma expressão da condição humana, relacionando-se como o bom e a verdade, mas mostrando o homem em sua realidade. Um humanista cristão mostrará os paradoxos e as dúvidas existenciais de uma realidade que o homem não compreende totalmente mas é convidado a aceitar.

A partir dessas idéias, Wolfe apresenta pequenos ensaios sobre escritores, poetas e artistas que expressam essas ligações entre os três transcendentais e as culturas correspondentes. Ele apresenta uma alternativa para as engessadas fórmulas de crítica, a maioria oriunda das universidades, que dominam a cultura a ponto de sufocá-la. Entender a arte como expressão do belo, mas conectada ao bom e à verdade é a chave para contemplar a beleza e seu papel fundamental para o desenvolvimento da imaginação, uma faculdade do espírito essencial para compreender a realidade. Como ressalta Wolfe:

Padre O’Malley me ajudou a ver porque me tornei um defensor da beleza como um agente necessário para tornar os apelos da verdade e bondade significativos.

Para concluir, vale a pena reproduzir um trecho de um poema de Milosz, que Wolfe usa para terminar seu preciso livro:

E quando as pessoas deixarem de acreditar que há bem e mal,

Somente o belo os chamará e salvará,

Para que ainda saibam como dizer: isto é verdadeiro e aquilo não.

Czeslaw Milosz