Platão era um aristocrata e como tal tinha a crença na tradição e na sabedoria dos homens que dirigiam a vida pública. No entanto, como discípulo, assistiu a aristocracia ateniense conduzir seu mestre à morte gerando uma fratura entre o real e o ideal que influenciaria toda sua obra.
A República
Ao contrário do que costuma dizer, Platão não criou uma utopia para ser alcançada pelos homens. Ele simplesmente imaginou o que seria a sociedade ideal para poder comparar e avaliar as sociedades reais em busca dos princípios fundamentais para guiar a sociedade humana.
Para Platão, a sociedade é o homem escrito com letras grandes; a soma dos indivíduos que a compõe. Devida a sua complexidade e a grande quantidade de membros, é necessário generalizá-la em um ente abstrato. Assim, existe o brasileiro, o italiano, o americano. São representantes de uma sociedade, mas quando colocados diante de uma pessoa real apresentam toda sua deficiência de conceito. Ele chamava atenção que o homem real não deveria ser encaixado no homem abstrato, não se poderia transformar um italiano real no italiano abstrato utilizado na generalização. (Platão já antecipava o horror das ideologias modernas).
Como a sociedade era a soma dos indivíduos, o estudo da sociedade partia do estudo do indivíduo, em particular, no estudo da alma.
Três Dimensões da Alma
Platão acreditava que a alma era composta por várias tendências diferentes guiadas por um princípio comum. Para ele, existiam três dimensões irredutíveis da alma humana. São elas:
1. Dimensão do ser vivo
Como ser vivo, o homem possui dois instintos naturais e poderosos, o instinto de sobrevivência e o instinto de reprodução. O primeiro pode ser representado pelo desejo de comer, o segundo pelo desejo de sexo. Aqui não há distinção do homem em relação aos animais. Platão representou esta dimensão por um animal de várias cabeças, com vários desejos, atuando entre dois extremos, o prazer (vida) e a dor (morte).
2. Dimensão do ser livre
O homem é capaz de ver adiante e se distinguir dos animais, mais do que isso, ele é capaz de pensar na própria morte. O homem chama este período entre o presente e sua morte de futuro. O desejo associado a construção de seu futuro é chamado de desejo de poder.
Platão ressalta que este poder poderia estar associado ao bem ou ao mal. Na verdade, para conseguir seus objetivos, o homem acumula recursos, aprende técnicas e se relaciona com os outros. A conquista do poder confere liberdade ao homem. Ao aprender piano, o homem se torna livre para tocar Bach, por exemplo.
Em seu desejo por liberdade, o homem se situa entre dois sentimentos, o de esperança (satisfazer seus desejos) e angústia (perder o que é seu). Platão associou este desejo com o leão, emblema da força, poder e liberdade.
3. Dimensão do ser perfeito
O fato do homem querer a vida e o futuro não é suficiente, ele quer a melhor vida, o melhor futuro. O homem quer a perfeição. Esta perfeição implica em fazer tudo o que se quer, não encontrar resistências. Para isso, o homem deve não só agir pelo bem, mas viver em uma sociedade que reconheça o bem. A perfeição não implica apenas no bem, mas na eternidade também. Tudo se resumo no desejo de felicidade, uma felicidade plena, absoluta e eterna.
Platão argumentava que este desejo não dependia apenas do homem, mas em algo maior do que ele, o bem em si. Consentino substitui o bem de Platão por Deus. A analogia agora é o próprio homem. O homem interior, o homem perfeito que habita o homem imperfeito.
Na primeira dimensão, o homem relaciona-se com a natureza. A vida é o desejo sub-humano. O poder é o propriamente humano, sua relação com os outros homens. A perfeição relaciona-se com o sobre-humano, com o divino.
Três Dimensões da Sociedade
Os conceitos da alma extendem-se agora à sociedade pois esta é a soma de seus indivíduos.
Dimensão Econômica
É como a sociedade relaciona-se com a natureza. Os indivíduos são cada vez mais livres para construir suas próprias vidas de acordo com seus interesses. Está relacionado com a produção e a troca, com a liberdade individual.
Dimensão Política
Os interesses individuais constantemente entram em choque. Eles devem ser subordinados aos interesses comuns de qualquer agrupamento humano, seja uma empresa ou o próprio estado. Aqui também, analogamente com o que acontece com o indivíduo, este poder pode ser para o bem ou para o mal. O interesse de uma sociedade nem sempre é justo. O direito é a expressão da dimensão política da sociedade é garantia da liberdade do seus membros.
Dimensão Religiosa
O bem público deve estar subordinado aos bens absolutos universais, que seriam os mesmos para todos os homens, o interesse comum da humanidade. Esta perfeição social também não poderia ser atingido apenas pelo homem, seria necessária a providência divina, a presença de Deus.
Para que uma sociedade seja saudável, duas condições deveriam ser atingidas:
– As três dimensões deveriam estar em pleno vigor
– A correta hierarquia entre elas. O homem interior deveria domar o leão, sem anulá-lo, que por sua vez dominaria o animal de múltiplas cabeças.
Platão fazia então a analogia dente o indivíduo e a sociedade. A primeira dimensão da alma seria sua parte animal, a segunda sua parte racional e a terceira a parte espiritual, relacionando-se, em termos de sociedade, com a economia, a política e a religião.
A cultura teria a função de evidenciar os desejos humanos, nos dar forças para dominá-los e nos apontar um sentido último para a existência. A República foi o ensaio que Platão fez para esta sociedade ideal.
Conclusão
Para que uma sociedade seja saudável, é preciso que as três dimensões estejam em harmonia. Quando uma invade o espaço de outra, gera uma anomalia que conduz a um ciclo vicioso.
Infelizmente Platão não tinha a seu favor a história para ver suas idéias em prática, coisa que temos hoje. Até que ponto as diversas sociedade que existiram e existem no mundo estão de acordo com este modelo platônico?
É o que Marcelo Consentino pretende analisar em um próximo artigo.