Shakespeare e o direito achado na rua

Existe uma vertente do direito brasileiro, cada vez mais influente, que defende que as leis podem ser flexibilizadas _ uso aqui um eufemismo _ em pró de uma justiça social. Argumentam que as leis foram feitas e são aplicadas para proteger os mais favorecidos, sejam pessoas ou empresas, e que cabiria ao sistema judiciário corrigir estas distorções. O ex-ministro da justiça, Márcio Thomás Bastos, ao defender a não aplicação da lei para os invasores de terra, chegou a afirmar que estava promovendo uma “acomodação tática da constituição”.

Leiam Shakespeare. Leiam O Mercador de Veneza. O dramaturgo já tratou deste assunto no século XVI.

Shylock, o judeu vingativo da peça, empresta dinheiro para Antônio, um mercador de Veneza. A cláusula para o não pagamento da dívida é uma libra de carne, a ser retirada de Antônio. Quando este não consegue pagar sua dívida conforme combinado, o judeu cobra a multa estipulada.

Logo Antônio consegue o dinheiro que devia, até quatro vezes o valor da dívida. Não adianta, Shylock está irredutível. Quer sua vingança, quer a carne de seu rival. O próprio juiz clama pela misericórdia, que o judeu aceite a oferta. Shylock, nada.

Shakespeare monta uma situação em que o cumprimento da lei implicaria em uma clara injustiça, a vida de um homem seria tomada por uma dívida de pouco valor. Bassânio, amigo de Antônio, faz uma súplica ao juiz:

__ (…) E eu lhe peço para moldar a lei à sua autoridade este uma única vez; para fazer um enorme bem, faça um mal mínimo e imponha limites à crueldade do propósito deste demônio.

__ Impossível; não há poder em Veneza que possa alterar um decreto sacramentado. Ficaria registrado como um precedente, e muitas ações legais equivocadas, uma vez dado esse exemplo, choveriam sobre o Estado.

O próprio Antônio havia anteriormente afirmado:

__ O Doge não pode impedir o cumprimento da lei; porque existem os benefícios de que gozam os estrangeiros aqui conosco em Veneza; uma vez não se cumprindo a lei, cai em descrédito a justiça no nosso Estado;

Não se nega, que em um caso isolado, o descumprimento da lei por uma autoridade pode gerar um bem. O problema é o que vem depois, o descrédito da própria lei e, em conseqüência, da justiça. Se a lei é ruim, existe o lugar apropriado para mudá-la, o parlamento.

Esta é também a divisão básica que Reinaldo Azevedo propõe entre direita e esquerda. Esta última defende que a lei pode ser solapada em nome da justiça social. A direita defende que a lei deve ser sempre cumprida por entender que o seu solopamento causa mais mal do que bem.

O bardo sabia das coisas.

Lei seca está fazendo água

Lauro Jardim:

A PRF já havia alertado há um mês para essa desaceleração na eficácia da lei e reforçará agora a necessidade de os motoristas respeitarem a regra. O número de autuações a motoristas pegos alcoolizados nesses quatro meses ficou 54,7% maior que no mesmo período do ano passado. E mais, após dois meses de afrouxamento da fiscalização, com uma redução do número de flagrantes, eles voltaram a crescer nas estradas, apesar de isso não ter se refletido diretamente em um aumento na redução do número de mortes. Ou seja, o motorista está sendo mais fiscalizado, mas continua indo para as estradas alcoolizado.

Comento:

Roberto Campos costumava comentar que tudo que é rigorosamente proibido acaba sendo ligeiramente permitido. O problema do alto índice de acidentes no Brasil não era o nível permitido de álcool nas estradas. Não havia necessidade de estruprar a constituição para promover demagogia.

O grande foco era a impunidade. Não adianta querer ser rigoroso com quem não cometeu nenhum crime e ser extremamente tolerante com quem o faz. Existem exemplos mil, o mais famoso deles é do jogador Edmundo. Embriagou-se, matou e até hoje está livre. Quantos mais estão na mesma situação? Quantos já realmente cumpriram alguma pena pelos acidentes que provocaram?

Outro problema crônico é as péssimas condições das estradas federais. Fica difícil investir na malha rodoviária quando o estado não dispõe de recursos para investimento e manutenção tendo em vista a prisão assistencialista que a carta de 88 provocou. A saída seria a iniciativa privada, mas o pedágio acaba caríssimo pelo alto custo de promover qualquer atividade econômica no país.

Soma-se isso ao espírito de desrespeito ao próximo e temos a tragédia que vemos ano após ano. Com a lei seca, tirou-se o foco das verdadeiras causas do problema. Passada a euforia inicial, a lei só funcionará mesmo para aqueles que nunca foram o problema, os bebedores moderados, aqueles que não costumam se exaltar.

Que mundo!

Folha:

As redes de TV fizeram a festa no Ibope com o caso Eloá, garota de 15 anos que foi mantida refém pelo ex-namorado, durante a semana passada, no apartamento em que morava, em Santo André. O total de televisores ligados na Grande SP no final de semana foi 15% maior do que no anterior. No sábado, a média de televisores foi de 46%, a maior dos últimos dois meses. A audiência das redes que mais investiram na cobertura do seqüestro cresceu. A média da Globo no domingo, das 7h à 0h, subiu de 16 para 20 pontos, um crescimento de 25%. A Record cresceu 43% -foi de sete para dez pontos. A Record News, canal de notícias da Record que opera em sistemas aberto e pago, finalmente saiu do traço. A emissora saltou de 0,3 para 1,0 no sábado, deixando a Gazeta para trás e encostando na Rede TV!. O SBT também registrou aumento de audiência. Na sexta, com o caso, a Record bateu a novela das seis da Globo (“Negócio da China”) e empatou com a das sete (“Três Irmãs”), mas desabou contra o “Jornal Nacional” (33 a 14).

Comento:

O que dizer? Que mundo é este onde uma tragédia vira fonte de lucro, onde as pessoas gostam de acompanhar, com uma certa morbidez, os mínimos detalhes da morte de um ser humano?

Oh, maravilha! Quantas boas criaturas há aqui! Que bela é a humanidade! Oh, admirável mundo novo, que tais pessoas tens!

Shakespeare já estava adivinhando o futuro; coisa própria dos grandes homens.

César Maia dá pitaco errado sobre caso em Santo André

Do ex-blog do prefeito do Rio:

1. Na coletiva que deu à imprensa no dia seguinte ao assassinato da menina Eloá, em Santo André, o Coronel-PM explicou porque não autorizou o tiro fatal por atirador de elite, mesmo o tendo por duas vezes na janela em situação que facilitava o tiro. A razão alegada não o qualifica para comandar uma operação como essa.

2. Disse ele que se o fizesse a imprensa cairia em cima dele porque teria matado um jovem apaixonado e que isso não se justificaria, etc, etc. Ora, se um Coronel PM de Operações Especiais, ao tomar uma decisão dessa leva em conta a suposição de como a imprensa trataria a sua decisão, é porque lhe falta preparo para a decisão.

Comento:

Maia está errado nesta querstão. Existe policiais que estão há 13 anos, vejam bem, 13 anos!, respondendo processo porque após o tiro de um sequestrador tiveram que atuar e o resultado foi a morte dos dois sequestradores e 2 reféns. O mais interessante é que não estão sendo julgados pela morte apenas dos 2 reféns, mas dos dois sequestradores também!

O que fazia um procurador ao lado do negociador da polícia? Não estava ali justamente para avaliar toda ação policial? Pare evitar que a polícia se excedesse?

Durante todo o sequestro havia uma preocupação da procuradoria com a integridade de Lindembergue. Quem vive no Brasil sabe disso, a vida de um bandido vale mais do que de uma pessoa de bem. Vimos isto este ano no Morro da Providência. De um lado um tenente do Exército, que errou sim, de outro três marginais. O resultado foi o massacre da imprensa, deixando para a justiça o retrado de um criminoso moralmente já condenado.

A justiça brasileira é extremamente dura com os policiais porque já parte do princípio que eles estão sempre se excedendo. Na prática acabam tendo que sempre provar que são inoscentes e não o contrário.

Dizer que o GATE é despreparado é uma leviandade do prefeito do Rio. Não quero dizer aqui que não tenham sido cometidos erros. O mais evidente foi o retorno da outra menina, mas daí a colocar a culpa do que aconteceu na Polícia vai uma distância gigantesca.

Até porque, mesmo que a menina não retornasse, nada indica que o final não seria o mesmo. Nem mesmo em Hollywood um sequestro acaba sempre bem. O verdadeiro responsável por tudo que aconteceu está preso.

Estão tentando transferir a culpa para pessoas de bem que estavam cumprindo seu dever, sujeitos a uma enorme tensão e a erros, pois são seres humanos. O dia em que a justiça confiar no julgamento de uma pessoa treinada em uma situação como essas ele poderá atuar apropriadamente. Aí sim, poderá ser cobrado.

Mais sobre a opção que o GATE não tinha

Desde a morte de Eloá tenho dito aqui a mesma coisa: matar Lindembergue era uma opção que a polícia de São Paulo não tinha. Reinaldo Azevedo é de longe o que melhor analisou tudo que aconteceu até agora. Em post de hoje, nos apresenta uma estória importante para entender o caso:

Em 1995, dois assaltantes fizeram reféns 18 operários numa obra — a construção de uma mansão — no Morumbi. Era dia de pagamento. O GATE foi acionado. A negociação se prolongou. Dado o primeiro tiro por um dos bandidos, os policiais decidiram invadir a área. Resultado: quatro mortos — os dois bandidos e dois reféns. Sabem o que aconteceu com o comandante e todos os soldados da operação? Respondem até hoje por um processo sob a acusação de homicídio doloso — para ser preciso: homicídio doloso de quatro pessoas. Treze anos depois, eles ainda não se livraram. O comandante era conhecido na tropa. Liderara antes o cerco a uma rebelião num presídio de Hortolândia. Levou um tiro na boca. Ferido, chamou o imediato, o que está documentado, e determinou: “Não deixe o pessoal perder o controle”. O episódio do Morumbi, infelizmente, restou como um exemplo — um mau exemplo — para os homens que atuam na linha de frente do GATE. Já chegou lá.

Anos de campanha sistemática dos formadores de opinião contra a polícia produziu este estado absurdo de coisas. Entre um bandido e um policial, a mídia em geral e nossa intelectualidade se coloca ao lado do bandido.

Vejam que fiz uma distinção importante: mídia e intelectuais. O povo, pelo menos o de bem, está do lado da polícia. Acha que se deveria ter matado Lindembergue se a chance aparecesse. Lamentam que a polícia não tenha aproveitado a invasão para matá-lo. Se houvesse um plebiscito, ele seria enforcado ou esquartejado, ou ambos.

Digo aqui que o povo é mais sábio? De jeito nenhum. É levado por um sentimento de vingança mas acertam em um ponto: sabem identificar o real culpado do que aconteceu em Santo André. Coisa que a maioria de nossos formadores de opinião não sabem. Ainda estão apaixonados pelo bandido da luz vermelha.

Prevaleceu o bom senso

Folha:

O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Carlos Ayres Britto, defendeu ontem o uso “desembaraçado” da internet para fins de propaganda política nas eleições de 2010, mas afirma que será necessário mudar a legislação eleitoral, “seja pela via legislativa, seja pela declaração de inconstitucionalidade das restrições”. A decisão do TSE da última sexta-feira liberou o uso dos sites de jornais e revistas, mas manteve a proibição para televisões, rádios e portais em geral.

Comento:

Foi uma decisão acertada. Censura na internet é um absurdo total, ainda mais levando-se em conta que a maior parte do conteúdo da rede é produzido por indivíduos. Quando se derruba uma comunidade no orkut em apoio a determinado candidato, na prática atua-se contra a liberdade de expressão.

Ainda existe muito a avançar. Esta estória de patrulhar as redes convencionais porque se tratam de concessão pública é de amargar. os negócios, lucros e prejuízos, são arcados por empresas particulares. Cabe apenas a elas decidir sua programação e deve-se confiar um pouco mais na capacidade das pessoas de decidir o que desejam e o que não desejam assistir.

Políticos não gostam muito de liberdade de imprensa, sabem que em geral receberão críticas. É assim que deve ser. Políticos devem ser constantemente vigiados; a imprensa é parte da vigilância saudável sobre as coisas públicas.

A imprensa livre é uma das garantias para a democracia.

Atentendo a um pedido especial.

Reinaldo Azevedo pediu em seu blog que se passasse adiante este post. Pedido do tio Rei não se recusa, é ordem.

Olhem aqui, eu estou entre aqueles que acreditam que o GATE também cometeu erros na operação que resultou na morte da garota Eloá: o mais óbvio, parece-me, foi ter, quando menos, criado as condições para que a outra garota, Nayara, voltasse à cena do cativeiro. Ainda que a equipe tenha considerado que ela era uma interlocutora útil, os devidos cuidados deveriam ter sido tomados para que não voltasse ao cativeiro. De todo modo, esse episódio não teve influência no desfecho trágico, convenha-se. Sim, que se apontem os erros. Mas tratar o GATE, agora, como um bando de trapalhões e incompetentes é injusto e, lamento dizer, só reforça a boca torta pelo uso do cachimbo. A imprensa não gosta da Polícia — isso é histórico. A simpatia pode crescer um pouco quando ela se armam e se junta a sindicalistas para fazer baderna, “companheiro”… Será mesmo o GATE tão incompetente? Em quantos casos de seqüestros dessa natureza a equipe já se envolveu? Qual é o seu saldo? É positivo? É negativo? Quais são os números? Pois eu tentei saber.

Sabem quantos foram os reféns mortos em operações mediadas pelo GATE de 1998 até hoje? APENAS DOIS! Em 2006, um marceneiro prendeu em sua loja a amante e a mulher. Acabou libertando a segunda, matou a primeira e se suicidou. Antes que a polícia pudesse fazer qualquer coisa. E temos, agora, o caso Eloá.

Só neste ano, o GATE atendeu 18 ocorrências — em 12 delas, os seqüestradores eram pessoas emocionalmente perturbadas; os demais eram criminosos comuns. Vinte e cinco seqüestradores foram presos (incluindo Lindemberg), e dois se suicidaram. NADA MENOS DE 47 REFÉNS FORAM LIBERADOS ILESOS SÓ NESTE ANO.

Numa entrevista ao Fantástico ontem, um brasileiro apresentado como instrutor de uma unidade da SWAT, apontou os muitos erros do GATE e chegou a dizer que “sente vergonha” dessa polícia. E indicou ali, depois do fato, claro, o que considerava os muitos procedimentos que deveriam ter sido adotados.

Não, não temos que endossar ou desculpar os eventuais erros do GATE. É preciso apontá-los — até para que sejam corrigidos, tomando o cuidado para não confundir filmes sobre a SWAT com operações da SWAT real. Será mesmo que os índices das unidades da polícia americana são superiores aos do GATE? Aposto que não.

Corrijam-se os erros. Mas, como brasileiro e paulista, eu tenho ORGULHO do desempenho do GATE nos últimos 10 anos, e não vergonha.