Hitler e os Alemães

Em 1964, Eric Voegelin proferiu um curso de verão na Universidade Ludwig Maximilian de introdução à Ciência Política. Ao invés de seguir o esquema tradicional de apresentar a teoria, com definições e conceitos, e exemplos de sua aplicação, ele fez diferente. A partir da experiência concreta que os alemães estavam vivendo naquele tempo, ele levanta alguns problemas de ordem política, sendo o principal dele a cumplicidade dos alemães como regime nazista, assunto que considerava longe de estar superado.

Posteriormente, Voegelin transformou esse curso no livro Hitler e os Alemães. Esse livro trata não só do problema da ascensão de Hitler ao poder, mas da problemática da ideologia política. Serve mais do que entender o fenômeno particular de Hitler, mas para entender como um líder estúpido e criminoso chega ao poder, com a cumplicidade de parte da população. 

Pois este tema continua atual. 

Estou elaborando um curso sobre este livro. Em breve, mais novidades. 

Mito como verdade

medusa-1366362_640Uma descoberta de Eric Voegelin, possivelmente o maior filósofo do século XX, foi que a sociedade se estrutura politicamente a partir de símbolos compactos que se diferenciam com o tempo. A linguagem parece complicada, então explico. O poeta é o primeiro a perceber a forma com o a sociedade existe, mas não consegue entender exatamente o que percebeu. Sua forma de registrar sua percepção é através da sua arte. Com o tempo, as percepções vão se condensando em símbolos compactos por força da tradição e das diversas criações ao longo do tempo. Esse símbolo compacto toma a forma de um mito, uma história que captura aquela experiência existencial. Portanto, a idéia moderna de que o mito é uma mentira revela a falta de entendimento do que seja o mito. Não é que o mito seja verdade, mas que a verdade está no mito.

O papel do filósofo, no sentido grego obviamente, é de depurar o mito e extrair dele a experiência da realidade. Esse processo, que poucos indivíduos conseguem fazer, é o que Voegelin chamou de diferenciação. É como se o filósofo, recorrendo à razão, buscasse entender o que o poeta percebeu mas que não teve como expressar de outra forma que não fosse através do mito. Não é à toa que quase todas as civilizações possuem um mito fundador, uma narrativa compacta que tenta mostrar com aquela sociedade surgiu. O Brasil é uma das exceções, o que sugere que não sejamos de fato uma civilização ou que não tivemos poetas capazes de apreender um símbolo através do mito.

Quando você entende isso, percebe que o mito é uma coisa muito séria, que deve ser estudado com todo o rigor. Para Voegelin, a questão principal era entender a realidade que deu origem aquele mito e qual o horizonte de consciência que o criador do mito tinha ao dar forma a um símbolo compacto dessa experiência. Esse era o método filosófico por excelência, tomar consciência do que se sabe. Não tem nada a ver com ficar estudando filósofos do passado e decorando fórmulas filosóficas.

Ou seja, passa bem longe do que se ensina em uma universidade brasileira. Não é à toa que a principal do Brasil, a USP, jamais formou um filósofo digno de monta. Formou no máximo historiadores, e ruins, de filosofia.

Sócrates e Platão

 

 

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A essência da filosofia de Sócrates era recuperar a identidade entre o logos e a coisa. Ou seja, que nosso discurso correspondesse à realidade.

Já a essência de Platão, parecido, mas diferente, era recuperar a identidade entre a pólis e o cosmos. Ou seja, fazer que a sociedade correspondesse à realidade.

Somos acostumados a pensar Sócrates e Platão como o auge da Grécia. Não foi assim. Eles viveram a decadência de Atenas, após a derrota para Esparta. O discurso público estava intoxicado pelos discursos falsos de sofistas, retóricos e euristas, e as palavras tinham perdido conexão com a realidade. Por causa disso, a vida política não refletia mais a realidade da condição humana.

O esforço dos dois foi no sentido de restauração. Desde aquela época, os poderosos não gostam que lhes digam verdades, como percebeu Sócrates. O mundo hoje é bem diferente, não é mesmo?

Uma pergunta sobre Hume

Outro dia, recebi a seguinte pergunta:

Relendo o “How to read a book”, na pág 168, que fala sobre a solidez no julgamento do autor, deparei-me com a colocação do Adler de que o tempo pode resultar em acréscimo de conhecimento, mas pode redundar em retrocesso também. Como ex., ele cita a obra do David Hume (XVIII), o qual “ignorava a distinção entre imagens e ideias”. Por outro lado, os filósofos da Antiguidade “distinguiam com clareza o que os seres humanos sentiam e imaginavam e o que podiam entender”. Você saberia dizer exatamente onde estava a ignorância do Hume nessa questão?

Bem, a pergunta é intrigante e tive que pesquisar um pouco. Não tenho a pretenção de saber a resposta, mas formulei uma tentativa de entender a questão.

Dave Hume tem como núcleo de sua filosofia o cepticismo. Segundo ele, não podemos ter nenhuma certeza sobre casualidade. O simples fato de usar um taco de sinuca para bater em uma bola não significa que ela se moveu por causa disso. São dois momentos distintos que apreendemos pelos sentidos, o movimento do taco e a bola se movendo. Como um acontece depois do outro, tiramos a conclusão que um causou o outro, mas não significa que seja sempre assim. Como toda vez que fazemos o movimento do taco a bola se move, é bem provável que seja por isso, mas nada garante que da próxima vez será assim. Dessa forma, Hume conclui que não podemos ter certeza de nada, apenas probabilidades. Não podemos ter certeza nenhuma sobre o mundo real.

A observação de Adler diz que ele não entendeu algo que era claro e óbvio para os gregos: que existe uma distinção entre imagem e idéia. Platão acreditava que tudo que víamos no mundo eram imagens e que a idéia, ou forma, encontrava-se em outro mundo onde não estaria sujeita a mudanças. Era isso que garantia que soubéssemos o que era um cachorro quando encontrássemos um. O importante é que as imagens eram imprecisas e se transformavam com o tempo. Qualquer cachorro real é uma imagem de um cachorro ideal e qualquer cachorro real sofre alterações com o tempo, até a sua morte. Aristóteles também fazia essa distinção, mas com uma diferença. Não havia mundo das idéias, a forma estava em cada cachorro individualmente. Ou seja, tudo era a mistura da idéia e da imagem, que é o que captamos através dos sentidos.

Acho que Adler quer dizer que Hume observou bem que os sentidos nos enganam e que as imagens sofrem transformação constante. Por não saber a distinção entre imagem e idéia, ele acreditava então que tudo era imagem, ou seja, tudo era incerto. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a idéia era a essência da coisa, ou seja, sem ela a coisa deixava de ser a coisa. A idéia de cachorro é a cachorridade. O importante é que a essência nunca se transforma. Ou seja, existe algo permanente que nos faz humanos, uma humanidade. Gosto muito do termo condição humana para descrever essa nossa humanidade.

O perigo de não saber essa distinção é acreditar na possibilidade de transformar a essência, o que Eric Voegelin chamou de metástase, a crença na possibilidade de mudar a estrutura da realidade. Uma pessoa com fé metastática acredita que pode transformar o ser humano, ou seja, de criar o novo homem. Está aberto aí o caminho para a ideologia moderna.

Outro ponto importante é que os antigos gregos acreditavam que os sentidos eram a porta para o conhecimento, mas não eram o conhecimento. Ou seja, o conhecimento não estava nos nossos sentimentos e imagens, mas nas idéias, ou seja, nas essências. Por causa de Hume, Kant concluiria que as essências são inacessíveis à razão, uma afirmação muito importante para o mundo que vivemos.

Por fim, a observação de Adler, que não tinha ainda prestado atenção, é um alerta que o progresso não é automático. Se podemos desaprender coisas passadas, podemos regredir, o que derruba grande parte das ideologias, que se baseiam na idéia de um progresso constante (uma idéia de Hegel).

PS: Em An Intelligent Person’s Guide to Philosophy, Sir Roger Scruton, trata da conclusão de Hume que a liberdade não existe pois não podemos provar a casualidade. Segundo Scruton, trata-se de um truque retórico. Sem ter como provar que a liberdade não existe, ele inverte a questão e pede que se prove a existência da liberdade. Scruton argumenta que se o senso comum é de que somos livres, cabe a ele contestar e provar que não é assim. De minha parte, eu duvido que Hume ficasse na frente de um sujeito com uma pistola apontada para ele.

PS2: Tem um livro que está na minha lista, que muito provavelmente trata dessa questão. Trata-se de Socrates Meets Hume, do Peter Kreft. (http://www.ignatiusinsight.com/features2010/pkreeft_introtohume_july2010.asp)

PS3: Hume influenciou profundamente Kant. Considerando a influência de Kant no mundo moderno, é importantíssimo entender seu pensamento. Mas ainda não acabei Platão e Aristóteles.

Luiz Sérgio Coelho de Sampaio

Finalmente terminei de assistir a série de vídeos sobre Antropologia Cultural desse Luiz Sérgio, de quem nunca tinha ouvido falar até ser indicado por um amigo.

Não posso dizer que entendi tudo de sua lógica hiperdialética (nome complicado, não é?), mas a coisa fez muito sentido em muitos pontos. E me fez entender um pensamento do Caetano! Em resumo, o vídeo é fascinante!

Vou precisar estudar mais.

 

 

A luz de São Tomás

No Brasil tenho a impressão que não importa o que você faça, se você disser que está lutando por justiça social terá simpatia imediata. Ou seja, as ações substantivas valem muito menos que o discurso. Se este estiver correto, pode-se tudo. É a velha discussão de que os fins justificam os meios.

São Tomás de Aquino, que foi muito mais sábio que todos nós, até porque era mais humilde, ensinava que uma ação tinha que ser justa nos meios e nos fins. Toda sua filosofia teve como centro a questão substancial e por isso mesmo jamais se deixou enganar pelas aparências. Ele tinha uma profunda reverência pela realidade e isso era a raiz de sua absurda sanidade. Desde que nos interditaram de tentar saber como as coisas são em sua essência, vivemos nesse mundo de sombras, tateando no escuro.

Todo o gigantesco esforço dos medievais em nos tirar da caverna de Platão foi revertido pelos filósofos modernos, que não só nos trouxeram de volta para a caverna como trataram de nos acorrentar com ainda mais força para que não saíssemos de lá nunca mais. O homem medieval foi capaz de vislumbrar a luz fora da caverna enquanto o homem antigo achava que a fogueira era a luz. O homem contemporâneo, filho do homem moderno, foi convencido que não há luz; e não consegue entender porque vive em desespero.