Bergman, silêncio

Comecei a ver a famosa trilogia Silêncio, de Ingmar Bergman. Esta semana assisti Através de um Espelho (1961), o primeiro. Minhas primeiras notas:

  1. Que atriz era a Bibi Andersen!
  2. Da mesma forma que Deus não responde, Papa também não conversa com Minus. A última frase de Minus no filme talvez seja a expressão do milagre. O menino fica literalmente iluminado.
  3. Pobre Martim. Ama realmente a esposa, mas não sabe o que fazer. A tragédia do homem comum, que é afastado por quem ama.
  4. Não entendi a imagem de Deus como uma aranha. Dizem que isso se explica no segundo filme. Veremos.
  5. Que diálogo entre Martim e Papa. O escritor se afastou de todos que ama, criando um vazio em suas vidas. Acho que é o próprio Bergman aí.
  6. Minus é explosão de energia, aprisionado.
  7. O escritor que busca algo pessoal para tratar. E encontra no sofrimento da filha.
  8. Os quatro personagens parecem viver esperando um sinal da presença divina, mas são incapazes para se abrir para esta experiência. A ilha no meio do nada é a metáfora para uma existência sem Deus.
  9. Eles jogam a rede, mas nada pescam.
  10. Não se encontra o amor sem se arriscar. É a mensagem da peça dentro do filme.

Ainda An Affair to Remember: notas de um filme metafísico

  • Os dois personagens estão tomados pelo ennui, o tédio existencial de quem conseguiu o que queria mas não um sentido para suas vidas.
  • Nickie, como diz a avó, sempre conseguiu as coisas fácil demais. Está prestes a se casar com uma milionária e passar uma vida sem preocupações.
  • Terry vai pelo mesmo caminho. Aparentemente teve uma infância difícil, mas vai se casar com um homem rico e terá segurança.
  • Nenhum dos dois estão felizes. Nickie queixa-se do tédio no navio, de não ter nada para se ocupar.
  • Ambos inicial um jogo de sedução, mais para se ocuparem do que por qualquer outro motivo.
  • Isolados do contexto de seus casamentos, daí a importância do navio, baixam suas guardas e se permitem ser honestos, o que gera uma camaradagem, origem do verdadeiro romance.
  • O processo culmina na ilha, quando a presença da avó e do ambiente familiar, reconectam ambos com suas origens, com as coisas que realmente importam. Saem as ilusões do mundo e fica um homem e uma mulher com suas falhas, e que se apaixonam.
  • A segunda parte da viagem é a rendição, em que ambos aceitam a inevitabilidade de largar os confortos materiais (nos dois casamentos) e viverem uma aventura, o romance. Chesterton já dizia que a essência do romance é a aventura, o medo misturado em confiança que o verdadeiro amor pode gerar.
  • Até aí, o filme poderia terminar no desembarque e fim das relações antigas. Só que vai além; os amantes não querem apenas o romance, querem ser dignos dele. Já sabem o que desejam, mas querem estar a altura do amor que nutrem um para o outro. Por isso os seis meses para “ajeitar a vida” são tão essenciais e confundem os críticos. Estes dizem que não faz sentido os seis meses para duas pessoas maduras como Nickie e Terry. Não faz sentido porque entendem o mundo apenas em sua realidade material, ignorando os aspecto espiritual. Eles se enganaram por tempo demais, vivendo a custas dos outros. Agora eles precisam tornarem-se auto-suficientes, mesmo que pobres.
  • Por isso Terry não conta do acidente, outro aspecto que parece inverossímil para os críticos. Ela não quer ser um fardo, ela precisa retomar sua autonomia, o que implica em superar sua dificuldade física. É preciso entender que durante este processo, são duas pessoas frágeis, que precisam se fortalecer.
  • Poderiam fazer isso juntos, mas o risco é grande de arruinar um relacionamento por não estarem ainda prontos. Não se trata de duas pessoas maduras que se encontram, mas de duas pessoas que se iludiram por muito tempo, que estavam à  beira do vazio existencial.
  • Quando se encontram, na cena final, já são pessoas autônomas. Com toda dificuldade, assumiram as rédeas de suas vidas e estão construindo suas histórias. Ainda resta um resquício de ironia e desconfiança em Nickie. Em nenhum momento passa por sua cabeça perguntar diretamente porque ela não compareceu ao encontro. Ele retoma, momentaneamente, o joguinho do início da viagem de navio. Falta-lhe ainda a confiança. Por fim, cai em si. Percebe seu erro, se arrepende e se coloca aos pés de Terry. Ambos estão prontos agora. Prontos para renderem-se ao outro.
  • Romance? Isso é uma estória de conversão! Uma conversão dupla, e por isso deve confundir tanto os críticos. Eles trocam o mundo da aparências (e do materialismo) pelo mundo da essência (da verdade), ou seja, o mundo do espírito, que é o que realmente importa. O instrumento para a conversão é o amor que sentem um pelo outro, a honestidade entre eles.
  • Como se chama uma estória de conversão, com base no amor e confiança, em que se marca um encontro no ponto mais alto de uma cidade para se unirem? Pois é. An Affair to Remember não é um romance, é um filme matafísico (o outro nome de religioso). Está disfarçado de romance. Como o cristianismo.

I, Tonya

Finalmente assisti o filme que conta a história de Tonya Harding, a patinadora americana que se envolveu em um atentado que resultou em quebrar o joelho de Nancy Kerrigan, sua rival.

Lembro dos acontecimentos na época, mas nunca me interessei muito nos detalhes. O filme é baseado em depoimentos dos envolvidos no que chamam de “incidente”: Tonya, o ex-marido Jeff, o amigo idiota Shawn, a mão dela e outros personagens mais secundários. Apesar de basear em depoimentos, ou talvez por causa disso, o filme deixa a dúvida na extensão do envolvimento de Tonya no episódio. O que resta claro é a responsabilidade de ter se envolvido com  a figura abusiva de Jeff. Será sempre um mistério como muitas mulheres continuam em relacionamentos destrutivos como ela se permitiu, sempre na esperança que a pessoa vai mudar.

Um bom filme, que usa bem o recurso de misturara narração com os próprios atores simulando as entrevistas, o que confere um ar de realismo ao drama mostrado. Fiquei lembrando um periscope que vi com Scott Adams em que ele questiona a importância da família argumentando que basta um dos pais serem ruins para arruinar a vida de uma pessoa. É o que acontece com Tonya.

Baby Doll (1956): retrato da modernidade

Ontem assisti Baby Doll (1956), dirigido por Elia Kazan e texto do Tennessee Williams. Três personagens fascinantes, retratos do mundo moderno.

Um homem fraco, constantemente humilhado, que perde o controle sobre seu destino por falta de capacidade pessoal para lidar com a modernização. Um posso de ressentimento que encontra no uso a violência sua válvula de escape.

Uma mulher que se recusa a crescer e acha que pode brincar de boneca a vida inteira. Ao finalmente encontrar uma adversário que se recusa a fazer seu jogo tem a oportunidade de enfim amadurecer.

Um homem racional, produto da modernidade, mas que diante da incapacidade do estado não pensa duas vezes em assumir a justiça nas próprias mãos. Falta-lhe piedade e empatia para lidar com o mundo.

Um panorama sobre a ruptura de uma antiga ordem para emergência de uma nova, de natureza científica mas desprovida de laços de amizade que constroem uma sociedade.

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Leituras do Dia: Zweig e Ortega

Comecei hoje a ler dois livros.

O primeiro é uma biografia do Ortega y Gasset, de Gonzáles Serrano. O autor chama atenção, nas páginas iniciais, para a crítica de Ortega às generalizações, que sempre implica em um erro de perspectiva e, principalmente, ao erro de achar que podemos ter uma fórmula aplicada a cada situação particular. Justamente aí está o problema de tentar definir um conservador pelas teses que acredita: a principal delas é não acreditar que possa existir uma tese universal que seja válida em todas as situações. Diante de um problema real, um conservador tem que parar, estudar a situação particular, para tentar encontrar uma solução com base no bom senso. Justamente o contrário do pensamento de esquerda que vai querer aplicar um dos seus dogmas independente do caso real, como mostra o caso do menino Alfie na Inglaterra. Aplicou-se uma receita geral a uma caso particular sem levar em conta seus aspectos próprios, como a oferta do Vaticano de tratar o menino e a vontade dos pais.

El desarrollo de la vida no permite fórmulas mágicas, concepciones puramente racionales que puedan ser aplicadas a cada caso en particular.

O segundo livro é uma coleção de 12 ensaios do Stephan Zweig chamada Momentos Estrelares da Humanidade. A concepção é interessante. Zweig defende que a maior parte da história é composta por horas desinteressantes, que culminam em alguns momentos decisivos, que impactam profundamente a história. Não que nada aconteça nestes períodos, pelo contrário. Estes acontecimentos pontuais concentram um longo desenvolvimento que culminam em uma decisão, uma ação ou mesmo não ação.

O primeiro ensaio é sobre Cícero e Zweig ressalta que ao ser exilado por Julio César, ele ganha o necessário distanciamento da vida pública e pode se voltar para si mesmo e refletir sobre sua vida e as coisas que realmente importam, os acontecimentos particulares. Lembrei-me da derrota eleitoral de Churchill em 1945, que lhe permitiu refletir sobre os acontecimentos da II Guerra Mundial. Acho que Deus age nestas horas para permitir o exílio desses grandes espíritos, beneficiando todos nós com a organização dos pensamentos que muito nos ajudam posteriormente.

Ramones Leave Home: Memórias

Tem discos que despertam mais que simples memórias, nos lembram estados de espírito. Estão associados a determinadas épocas que passávamos por transformações ou estados emocionais intensos.

Leave Home é um destes discos. Quando pensamos Ramones, pensamos no rock direto e visceral que salvou o próprio estilo do pedantismo que estava chegando. Foi como trazer de volta às origens, quando o rock conquistou a garotada no mundo inteiro por sua simplicidade, ritmo e temática. No entanto, neste disco é a melancolia de Joey cantando temas como Swallow my Pride e What’s Your Game que mais me tocam, provavelmente pelo estado de espírito que tinha na época, no alto dos meus 18 anos.

Como é bom voltar no tempo! Tão longe e ao mesmo tempo tão perto pela música. Um dia um primo me disse que o rock passa quando envelhecemos, que perde a graça. Quase 20 anos depois eu ainda sinto o sangue aquecer ao escutar os acordes básicos do Johnny Ramone e o baixo do Dee Dee. Para mim, eles serão eternos.

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Dica da Semana: What Happened to Monday?

mondayFiquei bem impressionado com essa produção original NETFLIX (Onde Está Segunda?, 2017). Trata-se de uma distopia. O mundo está superpovoado e uma mutação devido a manipulação de alimentos provoca um surto de nascimento de múltiplos gêmeos. A solução é instituir um programa de filhos únicos em que os demais irmão são congelados para que os cientistas resolvam o problema de alimentação e eles sejam descongelados no futuro, com o problema resolvido.

Acho impressionante como o fantasma malthusiano continua a assombrar muita gente e volta e meia surja um filme que trata do problema populacional. Confesso que quando viajo de avião, só vejo uma imensidão de espaços vazios, mesmo passando pelo Estado de São Paulo. Talvez o fato de grande parte do mundo ocidental estar vivendo em grandes cidades explique a sensação de um mundo super povoado.

De qualquer forma, o filme é muito bem feito, com grande dose de tensão ao mostrar a luta de sete irmãs gêmeas que conseguem a proeza de chegar aos 30 anos como se fossem uma só. O segrego é que cada dia da semana, só uma pode circular enquanto as demais ficam escondidas no apartamento. Só que algo dá errado e Segunda (cada uma tem um nome da semana) não retorna. Sem saber o que aconteceu, as demais começam a descifrar o enigma.

Sistemas totalitários se constroem com a destruição de laços de solidariedade construídos historicamente, como a família. Não é diferente neste filme, onde a união das irmãs é sua força contra o Estado, e a desunião sua fraqueza. Assistam e descubram o que aconteceu com Segunda.

Cinco motivos para assistir The Good Place

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Terminei a segunda temporada da série The Good Place, do Netflix. Próxima só será lançada em outubro. Por que assistir esta série? Eis meus cinco motivos:

  1. A base da série é a filosofia moral. E sim, pode ser bem divertido.
  2. Reflexões sobre o bem e o mal? Céu e o inferno? Aqui tem uma boa metafísica também.
  3. Reviravoltas. Várias. Melhor ainda se não tentar advinhá-las e se deixar surpreender.
  4. Crítica da cultura pop com piadas inspiradíssimas e sem apelação. Sutileza é o tom.
  5. Personagens memoráveis. E a volta em grande estilo do Ted Danson.

Thanos e seu simbolismo

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Apesar do título fazer referência aos Vingadores, Guerra Infinita é um filme sobre Thanos, o vilão cósmico que deseja eliminar metade das criaturas vivas pois acredita que o universo está desequilibrado, sem recursos para sustentar uma população tão grande, uma espécie de Malthusianismo cósmico. Ele acredita na racionalidade de sua solução e se coloca como aquele que tem coragem suficiente para implementá-la. Na maioria das vezes é simpático, bem articulado e sempre fala em nome do universo. Não surpreende que muitos o considerem interessante, que seu discurso “faz sentido”, pois ele ecoa, em muito, aqueles que tem o mundo como idéia, ou seja, que acham que o mundo é aquilo que acreditam ser, um produto de suas imaginações e não a realidade que se impõe.

Thanos é um símbolo de uma mentalidade que tomou conta do mundo a partir da modernidade, mas que encontra sua raiz nos movimentos gnósticos quem marcaram os primeiros séculos do cristianismo. Reduzindo bastante, o gnosticismo acredita que o mundo é uma criação imperfeita e tomada pelo mal. O homem é prisioneiro neste mundo e pode transformá-lo em um paraíso, bastando para isso o conhecimento de seus mecanismos. O gnosticismo foi considerado herético pela Igreja pois, na prática, nega a queda do homem. O mundo não seria um problema por causa do uso que o homem fez dele, mas porque foi criado de maneira imperfeita por Deus. A Igreja entendeu que o gnóstico queria simplesmente tomar o lugar de Deus para corrigir a criação.

Este é justamente o núcleo da motivação de Thanos. Thor percebeu muito bem e no início do filme diz a ele: você nunca será um deus. Mesmo concentrando todo o poder do universos, como o titã louco quer fazer, seu pensamento se baseia na maior ilusão de todas, o de tomar o trono de Deus. Essa mentalidade, que tanto anima as ideologias da modernidade, só é capaz de gerar o inferno, com muito sofrimento humano. “Mas as mortes são aleatórias, não distingue ricos e pobres!” dizem aqueles que justificam tudo em nome do igualitarismo. O filme acerta até nisso, pois como mostrou a experiência totalitária, o poder absoluto leva ao mal aleatório. Ninguém sabia quem Stálin mandaria matar a seguir. Poderia ser seu maior inimigo ou seu maior amigo. A morte se torna impessoal e por isso mesmo, aleatória.

Os heróis da marvel sabem que o homem é imperfeito e não possuem ilusões de um paraíso terreno. Tudo o que querem é lutar contra o mal, evitar ao máximo seu efeito destruidor. Para isso estão dispostos a qualquer sacrifício, como ir para o planeta de Thanos para evitar que a guerra se travasse na Terra. São humanos, e falhos. Por vezes deixam se levar pela hybris, como acontece com Peter Quin, o Starlord, e pagam caro por isso. Erram, sofrem, buscam a redenção. Essa é a epopéia de qualquer herói e por isso funcionam tão bem. No entanto, possuem um ponto em comum, recusam o pensamento utilitarista. Não aceitam trocar uma vida por milhões pois sabem que cada vida é um valor em si mesmo e aceitar uma troca destas significaria perder a alma, algo muito mais valioso do que a vida. Por isso Visão tem que viver; por isso o Doutor Estranho troca sua jóia pela vida de Tony Stark, que mal conhece.

Guerra Infinita apresenta o maior vilão da Marvel, alguém que representa o caos ordenado, o assassinato levado por uma mente fria e calculista, com pretensões científicas. Enfim, a mentalidade revolucionária de origem gnóstica. Não acredito que possa ser representado inteiramente por uma pessoa, mas seus traços estão presentes em gente e instituições que mostram uma máscara humanitária, de preocupação com o mundo, que precisa ser corrigido, mas que haverá um pequeno custo a pagar. Um custo que não será pago por eles, mas por nós que não acreditamos em suas pregações. Geralmente com nosso sangue pois o deles é precioso demais.