Contra Ário

Ângelo chegou atrasado, como sempre. Frederico já estava no terceiro chope. Na televisão do bar passava um jogo do Campeonato Brasileiro, mas Frederico acompanhava distraído. Não era muito de futebol; assim como, aliás, o recém chegado. Ângelo sentou e fez sinal pedindo o mesmo que o amigo. Logo estavam brindando a mais um encontro.

Os dois reuniam-se quase todas as quartas. Ângelo era professor universitário e neste dia só lecionava nos dois primeiros horários do turno noturno. Frederico trabalhava de dia, também professor, só que no ensino médio. Morava ao lado do bar, o que tornava fácil ajustarem os horários.

__ Como foi a aula?

__ Excelente. A turma estava animada hoje, respondendo, o que sempre me anima. Discutimos estética em Kant.

__ Não sei como consegue, juro.

__ Conseguir o que?

__ Discutir Kant com um bando de semiletrado. Aposto que metade não consegue ler dois parágrafos de Kant. Aliás, reformulo. Não conseguem ler um editorial inteiro do Globo. Falo ler de verdade, claro, e não apenas repetir palavras mentalmente. São ignorantes.

__ Você exagera. Como sempre.

__ Eu? Esquece que seus alunos passam antes por mim? Eu vejo as turmas, ano após ano, só piorarem. E tenho que ensinar religião para esses bárbaros! Logo eu, que desprezo todas elas.

Os dois se conheceram na faculdade, na filosofia. Depois Ângelo fez mestrado, doutorado. Perderam contato por alguns anos, mas voltaram a se encontrar quase por acaso. Moravam relativamente próximos.

Ângelo já estava no segundo chope quando Frederico continuou.

__ E você ainda dá aula de catecismo aos sábados. Nunca teria paciência. Odeio crianças.

__ Mas você dá aula no ensino médio!

__ Por isso mesmo.

Ângelo sacudiu a cabeça. Ele era incorrigível em seu mau humor e sarcasmo. No entanto, a despeito do gênio, era um amigo generoso, disposto sempre a ajudar quando preciso.

__ O catecismo é uma terapia para mim. A responsabilidade é bem menor; sinto-me mais solto. Nem preciso acreditar em tudo que falo.

Frederico observava duas garotas que sentavam-se no balcão próximo. Ângelo nem pareceu notar e acrescentou:

__ Por exemplo, Jesus e essa tal dupla natureza. O que importa isso? Para mim tanto faz se ele era de fato um deus ou um homem, o importante é a mensagem. Quando penso a respeito, tendo a achar que ele foi um homem iluminado, um santo, mas o próprio Deus? Não sei.

Frederico olhava para ele com os olhos arregalados, sustentando a caneca no meio do caminho para sua boca.

__ Não importa? É sério isso?

__ Não creio que a questão seja relevante, só isso.

Frederico não bebeu o chope e colocou novamente a caneca na mesa.

__ Ângelo, você foi seminarista! __ exclamou horrorizado.

__ Que tem a ver?

__ Você é um católico! Tem que saber que toda estrutura da sua Igreja repousa na fé da divindade do Cristo, na sua dupla natureza. Que ele é Deus, na trindade! O que você está dizendo é uma heresia, uma das maiores da história da sua fé, é a volta de Ário!

__ Não exagere.

__ Não estou exagerando. Essa questão é tão importante para sua Igreja que vocês repetem toda missa que Ário estava errado. Toda vez que recitam o credo. Todo domingo vocês repetem que Ário estava errado. Ário estava errado. Ário estava errado!

__ A maioria dos católicos nem presta atenção no que rezam.

__ Pois deveriam! Isso é sério! Eu posso ser ateu, mas sem o credo não conseguiria nem respeitar sua religião. Olha, sem a divindade do Cristo, se ele foi apenas um homem, mesmo que perfeito, então nada do que ele disse importa grande coisa. Mais até, não haveria salvação. A idéia da salvação só se sustenta na promessa do próprio Deus, na figura do Cristo. Você não entende? Se Cristo é um homem, os sacramento não servem de nada, nem a salvação. E sem a salvação a Igreja perde sentido!

Ficou um silêncio na mesa. Ângelo a esta altura já estava irritado. Quem era o católico, afinal? Mudou de assunto, não queria perder a noite discutindo teologia.

Horas depois, quando Frederico caminhava para casa, lembrou de sua mãe, em seus últimos instantes, segurando um terço. Ela rezara tanto para que ele se convertesse, mas ele resistira. Não quis lhe dar esta satisfação. E agora, não fazia mais sentido abraçar a Igreja de Cristo. O problema é que ele era uma pessoa séria e sabia que se um dia se tornasse católico, seria para valer. Não poderia continuar vivendo a sua vida da maneira como fazia. Não poderia ser como Ângelo.

Entrou em casa em silêncio e não sem uma grande tristeza.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *