Uma teoria da violência?

Outro dia presenciei um assalto, coisa de trombadinhas, na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana. Uma cena normal no Rio de Janeiro, mesmo no horário de uma da tarde e dos pivetes terem saltado de um ônibus, arrancado a bolsa de uma mulher, e retornado para o coletivo, rindo. Todos que assistiram a cena, eu, pedestres e passageiros de ônibus, olharam tudo anestesiados, sem ter o que fazer.

Antes que digam que se trata de Rio de Janeiro, e se trata mesmo, não podemos esquecer que essa cena ocorre em toda grande capitais do país; mesmo a de médio porte. A única vez que um pivete me assaltou foi em João Pessoa, em 1987, também durante o dia na principal avenida da cidade. De certa forma o Rio é uma visão ampliada dos problemas do Brasil. Ignorar que, em maior ou menor grau, somos todos Rio, como se diz na gíria da moda, é fechar os olhos para os próprios problemas.

Eduardo Matos de Alencar, em artigo recente na excelente revista Nabuco, faz uma reflexão sobre a lógica da violência nas grandes cidades e questiona se é possível uma teoria geral sobre a violência, o nirvana de todo intelectual. Ele resume as teorias existentes em três grandes grupos. A violência como um fenômeno econômico, uma escolha racional entre custos e benefícios (escassez financeira); a violência como resultado de características individuais negativas, de valores morais que não foram desenvolvidos na pessoa (insuficiência cognitiva); e a violência como um produto da circunstância, de acontecimentos que superam a disposição do agente (circunstância aleatória que preme o indivíduo). O problema é que nenhuma dessas explicações dá conta de indivíduos que agem por gosto, praticam a violência porque querem, independente de benefícios econômicos, história individual ou circunstâncias. A teoria não consegue explicar a frase: “roubei por prazer”.

brasil2bdominado2bmarianoUma teoria geral só seria possível se olhássemos para a essência do ser humano, ou seja, para uma antropologia filosófica que desse conta de evidenciar as razões que nos levam a ser violentos. Para Eduardo Matos coube a René Girard, com sua teoria do desejo mimético, apresentar um caminho para percorremos. Para Girard a essência do homem seria o desejo mimético, a vontade de imitar o próximo. Queremos algo não pelo seu valor em si, mas por quem alguém que temos como modelo, muitas vezes inconsciente, também quer. O problema é que quando o modelo está demasiadamente próximo cria-se uma tensão, podendo gerar uma competição violenta pelo bem, especialmente quando o mecanismo se extende ao modelo e passam a se influenciar um ao outro. O mais importante é que o objeto acaba perdendo a importância em relação à disputa em si. A violência nasce dessa reciprocidade. Para Girard, essa violência só consegue se aplacar pelo mecanismo desenvolvido pelas religiões arcaicas do bode expiatório. Só a partir do sacrifício de um inocente, que recebe todas as culpas pelo conflito, que a sociedade pode continuar existindo sem se deixar consumir pela violência.

Examinando a correspondência da teoria mimética com outros campos da existência como a biologia, psicanálise e sociologia, chama atenção a percepção do mecanismo culpa/vergonha. Existem duas formas, defende Eduardo, de lidarmos com nossos erros: assumir a culpa ou sentir vergonha. No primeiro, assumimos a responsabilidade e se tivermos um mecanismo adequado de arrependimento, podemos continuar em frente. No segundo, o indivíduo sente que está sendo humilhado e que na verdade não tem culpa do que está acontecendo, acumulando revolta que acaba por explodir em algum ponto. Coube a um psiquiatra norte-americano, James Gilligan, apontar que existe uma constante no relato dos indivíduos violentos nas penitenciárias americanas: uma idéia de desrespeito ou honra ferida, o resultado de uma sequência de humilhações, cuja causa era atribuída à vítima. A principal consequência é a morte do “self”, a anulação do eu, tornando o indivíduo imune a considerações morais sobre seus atos.

Eduardo Alencar nos alerta que o papel que a vergonha e a culpa desempenham na produção da violência é causa necessária, mas não suficiente. Há mecanismos que dissipam a vergonha e humilhação como a capacidade de sentir culpa, para que a humilhação não apareça de maneira tão devastadora e incontornável e que o indivíduo possua meios não-violentos de salvar ou resgatar a sua autoestima.

O problema que vivemos hoje é que a modernidade, no seu espírito de revolta contra Deus, acentuou de maneira extraordinária o ressentimento. Especialmente nas áreas urbanas, os mecanismos que lidavam com o aplacamento dos esquemas de humilhação como a família, igreja ou outras associações estão ruindo fruto de uma expansão desorganizada e desordenada. A morte de Deus geram um vazio existencial que impede que a pessoa sinta culpa e, portanto, assuma responsabilidade pelos castigos que sofre ao longo da vida. Tudo se torna ritual de humilhação gerando uma forma de alimentação mútua com o ressentimento. Marc Angenot denominou ideologia do ressentimento a visão de mundo que se desenvolve a partir da vergonha e humilhação. O futuro para o ressentido não é uma abertura ou emancipação, mas um acerto de contas rancoroso com o passado. A modernidade liberta o homem dos grilhões da cultura para o jogar nos grilhões do desejo mimético.

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