Sobre o sentimentalismo

Ontem li esta passagem do livro Fundamentos de Antropologia, de Stork e Echevarría.

A conduta não mediada pela reflexão e pela vontade, dizer, o sentimentalismo, produz insatisfação. Adotar quer como critério para uma determinada conduta, a presença ou a ausência de sentimentos que a justificam, gera uma vida dependente dos estados de ânimo, uma certa atitude escravizada. Os ânimos são cíclicos e terrivelmente mutantes: as euforias e os desânimos vão se sucedendo, sobretudo nos caracteres mais sentimentais, desfazendo o domínio da vontade. A conduta deixa de responder a um critério racional e depende de como nos sintamos. Isso é o que chamamos “ter ganas” (de estudar, de trabalhar, de discutir, de dar explicações etc.).

Ter ganas de, como critério de conduta, não conduz à excelência, mas, sim, as subordinam ao fácil, ao que em longo prazo (e também em curto) decepciona. Uma sociedade sentimental é uma sociedade que fica nas mãos da causalidade. Nela, as pessoas querem deixar de ser responsáveis, enquanto navegam na turva “tentação da inocência”, que consiste em responder que não se queria fazer mal, quando por seguir o que se sente se comete uma injustiça contra a realidade do mundo. O infantilismo (medo de crescer, de assumir responsabilidade) é a grande enfermidade de nosso tempo.

Em defesa do decoro (e da dignidade)

Fico olhando a foto do G7, aquela na praia, enfatizando o distanciamento social, mesmo em ambiente aberto e o que me incomoda mais é ver novamente como o senso de decoro foi destruído no ocidente. Uma das marcas da modernidade, mas que a pandemia só agravou (ou revelou).

Decoro é considerado algo ultrapassado, que não tem lugar no mundo de hoje. Todos temos que ser livres para nos comportarmos como quisermos, desde que seja do jeito que os totalitários da modernidade prescrevem, claro.

Aquele abraço no meio de plástico, a máscara com abertura para comer, o governador acenando para um shopping vazio e por aí vai. Tudo extremamente cafona, feio, sem sentido. O bom senso é destruído, mas não é só isso. O decoro está no coração da nossa dignidade. Quando abrimos mão do decoro, abrimos mão também da dignidade, o que é um passo enorme para desumanização da pessoa.

O século XX nos ensinou bem demais o que acontece quando a pessoa deixa de ser vista como um ser humano.

O que ando lendo?

1. Como sempre, 2 ou 3 artigos da Suma Teológica todo dia. Projeto de leitura que durará uns 5 anos. Estou no ano 3. O tema desta semanas são as potências do uso e da ordenação. Bem aristotélico esta parte.

2. A Revolução Voegeliana. Uma análise da obra de Eric Voegelin por Elliz Sandoz, um de seus alunos de doutorado. Li o capítulo que trata da Nova Ciência da Política, em que Voegelin faz sua crítica às ciências sociais positivistas e coloca uma de suas teses fundamentais: não se deve estudar a sociedade como se fosse um objeto distante. O homem participa da realidade e a entende por auto-participação.

3. A Violência e o Sagrado. Prosseguindo a aventura de Rene Girard sobre a origem da cultura, no capítulo V ele faz um estudo sobre a peça de Eurípedes, As Bacantes. O bacanal da peça nada mais é que um ritual de sacrifício disfarçado, conduzido por um deus que restaura a paz em uma sociedade pela morte de Penteu.

4. As Ilusões Perdidas. Comecei o clássico de Balzac. No momento, o poeta Lucien corteja a bela Madame de Bergeton e é introduzido na alta sociedade da pequena cidade em que vive.

5. A Vida da Virgem, de São Máximo Confessor. A mais antiga biografia de Maria que chegou até nós.

Está bom, né? Parece que leio muito, mas na média devo ler uma hora e meia por dia. Só que o faço todo dia.

O limite da justiça estatal

Nivaldo Cordeiro em seu curso sobre Dom Quixote, argumenta que Cervantes faz uma crítica ao Estado moderno, especialmente na questão da administração da justiça. Na tradição clássica e medieval admitia-se a superioridade do direito divino ou natural sobre costumes, jurisprudência só para então chegar no direito positivo, que devia estar subordinado ao primeiro. A modernidade exclui todas as instâncias superiores e diviniza o direito positivo como fonte de toda justiça.

O resultado é que o estado vai se tornando cada vez mais eficiente em prender as pessoas e chega na situação de ter regiões do mundo com pelo menos 5% da população masculina encarcerada e subindo. Significa que alguma coisa não está funcionando, pois a sociedade se torna cada vez mais violenta, mesmo em países do chamado primeiro mundo.

Para Nivaldo, o grande problema da justiça do estado moderno é que ela ignora completamente o perdão, parte da justiça divina e se torna, na realidade, uma justiça vingativa.

Parece uma utopia imaginar que a justiça cristã, com base no perdão, poderia funcionar melhor do que a justiça positiva vingativa do estado. Só que na prática, esta também parece não estar resultado em uma sociedade melhor.

Tem solução?

Educação na modernidade: um beco sem saída

Terminei de reler Didascalicon, pequeno tratado sobre a educação escrito por Hugo de São Vítor no século XII. Sério. Século XII. E o livro é impressionante.

De forma didática e clara, o monge expõe os princípios que estão na base da verdadeira educação. Há ali uma lógica infalível, que torna claro o que foi escondido pelos pedagogos da modernidade em uma linguagem técnica e obscura. O verdadeiro aprender a aprender está nas páginas desta pequena maravilha.

Há algumas partes que já não se aplicam, como a divisão das artes mecânicas, mas no cerne o livro é mais que atual, é urgente.

O que chamamos de educação é justamente seu oposto, um conjunto de práticas e mecanismos que nos afastam do conhecimento, da capacidade de expressar nossas idéias, de fluir nosso pensamento. Hoje aprendemos a executar técnicas específicas, um discurso pomposo e obscuro, próprio para iniciados, e nos conformar com as teorias sociais da moda.

Nada a ver com o que São Vítor nos apresenta. Claro que ele coloca a teologia, e as Sagradas Escrituras, no topo do conhecimento, mas mesmo abstraindo do aspecto religiosos, o que sobra é ainda um grande tesouro da filosofia, física, matemática e tantas disciplinas que nos ensinam realmente. Sobretudo sobra amor ao conhecimento e a necessidade de conhecer para termos uma vida melhor.

Dom Quixote: uma obra católica

Encontrei no youtube um curso do Nivaldo Cordeiro sobre Dmn Quixote, a imortal obra de Cervantes. Já tinha assistido anos atrás um curso dele sobre Dr Fausto, de Thomas Mann, que achei excelente.

Na primeira aula, Cordeiro chama atenção para algo que deveria ser óbvio, Cervantes escreve uma obra católica. Ele mesmo foi um soldado ferido na batalha de Lepanto, onde fez parte da esquadra que combateu os muçulmanos e por 5 anos foi prisioneiro dos mouros em Argel.

Ao recapitular alguns intérpretes da obra, chama atenção para a diferente visão de dois grandes nomes da filosofia espanhola: Ortega Y Gasset e Miguel Unamuno. Para Cordeiro, só Unamuno entendeu a dimensão católica da obra. Ortega, muito influenciado pelo esteticismo de Goethe, que enxergava a tradição germânica como uma das raízes da Europa ao invés do cristianismo, deixou de perceber este significado essencial da obra. Erro que também sofreria séculos depois Vargas Llosa, que enxergou bem o livro como feito para o século XXI, mas o associou ao triunfo do liberalismo, que tem para ele a força de uma ideologia.

Através do humor e da loucura do cavaleiro andante, Cervantes disfarça uma crítica profunda tanto ao Estado nacional que se instalava na Europa quanto à Igreja modernizada. Ele enxergava na expulsão dos judeus e dos mouros convertidos na península ibérica uma proposta de limpeza racial, que era incompatível com o ideal cristão. Era o prenúncio da idéia demoníaca de uma raça pura, que ainda promoveria uma grande tragédia no mundo.

Um sábado para deixar saudades

Nem sempre precisamos fazer algo de extraordinário para que um dia fique em nossa história pessoal. Muitas vezes as coisas mais simples geram sensações profundas, ainda mais quando percebemos isso no decorrer do dia e refletimos a respeito. É aquele sentimento de estarmos sendo abençoados.

Ontem foi um dia assim. Desde que acordei e fiz minha leitura diária da Suma Teológica, um poderoso instrumento para pensarmos melhor, tudo aconteceu numa seqüência natural, sem muito planejamento. Café com a esposa na Infinu, algumas compras de presentes, almoço simples em casa, uma saída para o shopping Terraço, onde tem uma boa área aberta, uma saída com a esposa à noite, uma chopperia artesanal e o fim de noite novamente na Infinu, tomando o tradicional vinho branco e observando a alegria ao redor. Para coroar, o Red Sox ainda ganha dos Yankees.

Não teve nenhum evento, coisas triviais. Sei que no meio da pandemia tem gente que vai torcer o nariz, respeito. Mas somos seres sociais e permanecer em casa por tempo indeterminado é um preço grande demais a se pagar em um ambiente de tanta incerteza. Neste ponto estou confiando que a reinfecção é realmente rara e que mesmo assim teremos mais facilidade na produção de anticorpos. Cientificamente provado? Questão errada. A ciência não prova nada, apenas levanta hipóteses mais prováveis. Aliás, ao que parece a ciência está na origem desta pandemia, não é Doutor Fauci (ou Fausto)?

Enfim, cada um que julgue seus riscos e viva sua vida. Estou tratando de viver a minha e nela sempre vai incluir a liberdade.

Tchau sábado 5 de junho de 2021, foi um prazer te conhecer.

Rublev e o ícone da trindade

Andrei Rublev foi um artista russo que pintou vários ícones maravilhosos no início do século XVI. Há toda uma teoria sobre os ícones, que tem muito mais a ver com o sagrado do que as belas pinturas do renascimento, como as de Michelangelo e Da Vinci, mas fica para outro texto.

Aliás, sobre Rublev recomendo o clássico do Tarkovisky.

Um dos ícones pintados por ele é esse em que retrata a trindade, centro da fé cristã (o Deus que ao mesmo tempo é três). Uma explicação detalhada sobre o significado da obra encontra-se aqui.

Conto da semana: The Comforts of Home (Flannery O´Connor)

O que mais me chamou atenção neste conto é que Thomas em nenhum momento se questiona sobre seu papel na casa. Embora demonstre carinho pela mãe, parece-me que o conforto tem na casa é o maior motivo para estar vivendo ali, aos 35 anos, com a mãe idosa. Mais uma vez Flannery nos apresenta uma mãe aparentemente sem instrução, mas profundamente caridosa, lidando com um filho intelectual, que vê as atitudes dela com condescendência.

A entrada de Sarah impacta o equilíbrio da casa. Thomas não só se recusa a entender o ponto de vista da mãe, como vê imediatamente a moça como sua antagonista. Talvez ela seja seu próprio espelho, pois tudo que a acusa pode de certa forma ser referido a ele mesmo. Ele reconhece que ela tem uma inocência natural, mas a vê como a presença do mal no mundo, que precisa ser eliminado pois não tem correção possível.

Em Thomas temos o orgulho, a idolatria e um desejo crescente de agir em nome da justiça. A receita para o desastre.

Noche Oscura

Também conhecida como a Noite Escura da Alma, este poema de São João da Cruz, do século XVI, é um primor de beleza e musicalidade. Na verdade é também uma canção.

O místico espanhol escreveu esta poesia com profundo sentido religiosos para cativar nossas almas. Para explicá-la, escreveu um livro. Resolvi memorizar os versos antes de ler a explicação. Acho que foi uma boa medida.

Como são só oito estrofes, fui memorizando um pouco, uma por dia. Agora já consigo recitá-la inteira.

A noite escura refere-se a adormecer nossas paixões materiais e nossos sentidos para que possamos contemplar a Deus e Amá-lo. Pelo menos foi minha primeira impressão. Pode ser lido inteiramente como um poema de amor, ignorando completamente o sentido religioso. Coisa de mestre. Fica a primeira estrofe para terem uma idéia: