The Mission e Soul: dois lados da mesma moeda

Interessante como as coisas se ligam.

Ontem terminei de ler Música para Viagem do Neil Peart. Na conclusão do livro ele cita a letra da música The Mission, onde ele descreve a relação da pessoa com o que seria sua missão de vida. Cito estes lindos versos:

We each pay a fabulous price

For our visions of paradise

But a spirit with a vision

Is a dream with a mission…

Hoje assisti com a família o belíssimo filme Soul, da Pixar (como eles acertam sempre!). O tema do filme é justamente a busca de um propósito, de entender o que seria a missão de uma vida. Lembrou-me muito a música e as páginas finais do livro de Peart.

Nos tempos de absoluta histeria que vivemos, temos que lembrar que todos temos um propósito na vida e que nossa visão do paraíso pode nos fazer pagar um sério preço, como o personagem principal de Soul.

Jesus de Nazaré: tentações de Cristo

Prosseguindo no projeto de releitura de Jesus de Nazaré, do Papa Bento XVI, o capítulo 2 trata das tentações de Cristo, que na verdade referem-se às tentações que todos nós enfrentamos ao longo da vida.

Bento XVI lembra que as tentações são também uma introdução ao tema do sentido da vida humana. O fundamento comum entre as três é colocar Deus como uma questão secundária, para não dizer supérflua ou mesmo incômoda, diante das urgências do mundo. É entender que as realidades políticas e materiais são as que realmente importam e que a ligação com Deus é quase um luxo.

A primeira tentação, transformar pedra em pão, representa por um lado uma obrigação de Cristo e sua Igreja apresentarem provas materiais de sua divindade e por outro a colocação da necessidade material como pré-condição para adoração do Senhor. O marxismo foi um exemplo da explícita defesa deste princípio e no fim gerou sofrimento e destruição pois inverteu a correta hierarquia dos bens. O próprio ocidente desenvolvido comete o mesmo erro ao acreditar que a ajuda humanitária tem que ser apenas técnica e material, o que termina por perpetuar o chamado terceiro mundo. Na multiplicação dos pães, Jesus realiza o que nega ao diabo no deserto, pois naquele episódio o contexto está correto: o povo buscou o senhor em adoração, pediu o pão e o recebeu. Deus tem que vir sempre em primeiro lugar e não com pré-condições.

A segunda tentação é a mais difícil de entender, a de se atirar do pináculo do templo para ser seguro pelos anjos, conforme um salmo citado pelo tentador. Significa que as escrituras podem ser usadas por satanás como um arma, que muitas vezes se apresenta como um grande teólogo. Está presente ao longo da história com as discussões teológicas sobre a correta imagem de Deus, que por muitos deveriam ter um poder mais visível sobre a terra. Só que o poder do Cristo é de outra natureza. Jesus não se atira do pináculo para ser salvo por anjos, mas aceita descer ao nível dos homens, passar por seu martírio e ressuscitar, confiando sempre no Pai. O diabo nunca propõe diretamente o mal, sempre o reveste de uma aparência racional e lógica.

Por fim, a terceira tentação, a maior de todas, é de reinar sobre este mundo pelo poder humano. É a tentação de usar o poder como instrumento para impor a fé, o que termina sempre com a subordinação da fé aos poderes terrenos. A Igreja não pode identificar-se com nenhuma figura política e aqui cabe uma pequena reflexão sobre a figura de Barrabás.

Ele representa a escolha do povo de Deus entre duas figuras messiânicas. Jesus propunha o amor como instrumento para criação de um reino além deste mundo, o que significa em boa parte a aceitação do sofrimento da nossa existência. Barrabás, que não era simplesmente um assassino, mas um líder revolucionário, propunha a ação política concreta para promover a justiça no mundo. O que está subtendido na proposta de Barrabás é que Deus se coloca como questão secundária por uma solução que aparente ser racional e efetiva. Será que o homem de hoje escolheria diferente?

A nova forma desta tentação é o cristianismo assumir como missão promover o progresso, bem-estar e um mundo melhor, esquecendo que nenhum reino deste mundo é o reino prometido por Deus. Mas se Jesus não veio trazer estas soluções, qual seria seu papel como redentor?

Jesus veio trazer Deus como resposta. A verdadeira face do Senhor. Fé, esperança e amor como nossas armas para enfrentar todas as dificuldades. O poder de satanás e um poder da aparências, pois distorce a ordem correta dos bens na alma dos homens e gera sempre injustiça. Vencer as tentações do diabo é afirmar o poder de Deus como central em todas as questões humanas, por mais urgentes e relevantes que elas aparentam ser.

Trabalho Intelectual: Leitura como enriquecimento de si

No capítulo VI de O Trabalho Intelectual, Jean Guitton trata da leitura. Ele defende a idéia que a principal função da leitura é o enriquecimento de si. Parece trivial, mas está em contraste com a idéia de que a leitura é principalmente uma fonte de obtenção de informação ou conhecimento, bem típica da visão utilitarista que caracteriza a modernidade.

Desta forma, rejeita a idéia de que devemos ler muito; ao contrário, pede que resistamos a esta tentação. É preciso selecionar bem o que vai ler e fazê-lo com atenção. Uma grande imagem que chama atenção é de saber parar a leitura quando um trecho tocar nosso espírito. Não podemos seguir adiante, mudar de página, sem refletir sobre a mensagem que nos chegou na alma. Esta é a imagem de uma boa leitura, a pessoa com o livro aberto, pensando no que acabou de ler.

Guitton também argumenta que os romances, as boas obras de ficção, são a melhor fonte para entender as questões fundamentais da vida. Os bons romancistas, em cada geração, são poucos pois é muito difícil contar uma estória. Muito mais fácil é descrever as superficialidades da vida. Temos que ter todo cuidado com as obras das ciências, costumam ter vida útil muito curto, não mais que 30 anos (uma geração). Já as obras de poesia e filosofia costumam ser perenes.

Se alguém deseja um texto curto sobre a arte da leitura, este capítulo de Guitton é uma ótima pedida. Tem insights ótimos, daqueles que ele mesmo descreve, de nos fazer parar para refletir.

Ah, e tem este parágrafo sensacional:

Precisamos ler os romances para conhecermos o sentido de nossa vida e da vida dos que nos rodeiam, um sentido que o embotamento do quotidiano nos esconde; precisamos lê-los para penetrar em meios sociais diferentes do nosso e para neles encontrarmos, para além da diferença dos costumes, a semelhança da natureza humana; para estudarmos, como se fosse num laboratório, os problemas fundamentais, que são os do pecado, do amor e do destino, e isso de forma concreta e sem as transposições da moral; enfim, para que enriqueçamos a nossa vida com a substância e a magia de outras existências.

Um mundo dividido

Ontem estava escutando Half the World, do ótimo disco do Rush Test For Echo. Reflete bem o que estou vendo neste momento, a divisão cada vez mais radical no mundo livre. Vivemos tempos sombrios.

Half the world hates
What half the world does every day
Half the world waits
While half gets on with it anyway

Half the world lives
Half the world makes
Half the world gives
While the other half takes

Half the world is
Half the world was
Half the world thinks
While the other half does

Half the world talks
With half a mind on what they say
Half the world walks
With half a mind to run away

Half the world lies
Half the world learns
Half the world flies
As half the world turns

Half the world cries
Half the world laughs
Half the world tries
To be the other half

Half of us divided
Like a torn-up photograph
Half of us are trying
To reach the other half

Half the world cares
While half the world is wasting the day
Half the world shares
While half the world is stealing away

Profético, não?

Brasil: até quando buscaremos bodes expiatórios?

Ser brasileiro é em grande parte lidar com as frustrações. Temos expectativas altas, fruto de um certo otimismo que vem desde nossa origem. Há um ufanismo latente em boa parte de nós, aproveitando cada pequena chance de aflorar. Daí a grande frustração que costumamos sentir quando estas expectativas não se realizam, muito por nossa própria ação ou falta de ação concreta.

O grande problema, a meu ver, é que não aprendemos com nossos erros. Temos imensa dificuldade em juntar causa e efeito, o que nos levaria a assumir certas responsabilidades, como pelo menos dar o exemplo. Queremos que seja sempre o outro a solução, o que explica um pouco da nossa busca de um salvador do tipo messiânico.

O que nos leva à tendência de eleger bodes expiatórios para nossas desgraças. Desde o futebol até a política, alguém tem que ser escolhido como único culpado para que possamos dormir tranquilos com nossas consciências. De tempos em tempos a sociedade se une para linchar um bode expiatório como grande culpado de nosso fracasso.

Não seria diferente agora, nesta pandemia. Praticamente toda discussão política é sobre a escolha de um bode expiatório, alguém que possa levar toda culpa por algo que não foi criado em nosso país e que tenho sérias dúvidas se realmente se possa fazer alguma coisa para conter o contágio. Mas precisamos acreditar que sim, não é? Precisamos ter o conforto de saber que nossas autoridades estão cuidando de nós e vão nos proteger. Diante dos números macabros, aqui e no mundo ocidental, sim, parece que o vírus tem uma predileção pelo ocidente, e não vejo ninguém comentando isso, precisamos ter um culpado para ser destruído.

O vírus tem sua lógica própria e não sei se podemos controlá-lo, mas a forma como reagimos a ele é inteiramente nossa. E vejo um imenso fracasso de todos nós. Continuamos a não aprender com nossos erros e continuaremos a falhar enquanto sociedade.

ZETTELKASTEN: como aprender?

Descobri ontem o método zettelkasten, desenvolvido pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, que também nunca tinha ouvido falar. Parece que foi um nome importante em sua área e se notabilizou por uma imensa produção textual de qualidade. Na base disso tudo, tinha um método baseado no uso de fichas e caixas de fichário.

Ainda estou aprendendo, mas não se trata de um método de anotações, mas sobretudo de um sistema para associação de idéias a partir de fichas escritas. Nestas fichas, anota-se tudo: idéias próprias, entendimento de leituras, biografias, referências. O segredo é como colocar na caixa. Ele rejeita a idéia de agrupar por tópicos e usa a semelhança de idéias, gerando um agrupamento natural.

É a diferença de informação e conhecimento.

Quem gosta de ler muito, como eu, e gosta de escrever, eu de novo, sente um grande dilema de não usar todo potencial das idéias que temos contato. Esquecemos muitas coisas, inclusive que já tivemos contato com aquelas idéias. Esta foi a motivação de Luhmann, escrever notas sobre o que aprendemos e nos forçar a revisar quase diariamente estas notas, nem que seja para “encaixar” as novas notas.

Já escrevi minhas primeiras fichas. Sobre o método, claro.

Quer saber mais? Indico este livro.

Aproveitem os momentos

Sabem aqueles dias que por um motivo qualquer a família se reúne na mesa e começa a fluir uma conversa gostosa, com todo mundo meio inspirado e espirituoso? Pois é, acontece. E quando esses momentos acontecem, só tenho uma coisa a dizer, aproveitem.

Costumamos pensar que as situações sempre permanecem as mesmas, que nada vai realmente mudar. Só que aquele momento especial pode nunca mais se repetir, e por isso mesmo temos que aproveitá-lo ao máximo.

Não consigo me expressar direito e nem quero ser mórbido, mas talvez devêssemos valorizar algumas ocasiões como se fosse a última, mesmo que não seja. Tem uma peça de teatro que demonstra a importância do momento como nenhum outro texto que já li. Chama-se Nossa Cidade, de Thorton Wilder. Tem uma edição antiga em sebo. Li em algum lugar que é a peça mais encenada no teatro norte-americano.

Este é o verdadeiro sentido de carpe diem.

Bandas desconhecidas: The Tragically Hip

Uma das coisas legais de ler Música para Viagens, do Neil Peart, ex-baterista do Rush, é que ele mistura bem artistas conhecidos, como Frank Sinatra, James Brown, Roxy Music, com outros que chegaram perto do sucesso, mas não conseguiram ultrapassar aquela linha divisória. Viram a terra prometida, mas não puderam entrar.

Uma destas bandas é a canadense The Tragically Hip. Estou escutando o disco Fully Completely e posso dizer que gostei de todas as músicas. Destaques, por enquanto, para Pigeon Camera e a faixa título. Gostando demais da sonoridade da bateria e do som coeso que eles faziam. Peart está se revelando um grande guia musical.