A importância da atenção

Prosseguindo no projeto de reler, todo sábado, um capítulo de O Trabalho Intelectual, de Jean Guitton, hoje foi a vez do Capítulo II, A Preparação dos Trabalhos.

Guitton condena uma atitude muito comum em quem deseja ser um intelectual de querer saber de tudo. Os grandes gênios foram aqueles que sabiam algumas poucas coisas em profundidade e tinham capacidade de utilizar estes conhecimentos para analisar os mais diversos problemas. Eles giravam em torno de alguns poucos pontos, acrescentando a cada giro uma força de compreensão que os distinguiam em relação aos outros. Saber um pouco de cada coisa é querer ser uma enciclopédia ou dicionário, e sempre iremos perder porque para isso existe o registro escrito. De nada vale o conhecimento de apenas repetir o que está em algum lugar. Sabemos usar o que memorizamos? Entendemos de fato?

Confesso que é uma das minhas maiores dificuldades. Quero estudar tudo, ler tudo, saber de tudo. Ainda resisto a uma obviedade que não quero aceitar, a absoluta impossibilidade em ser um homem-enciclopédia. É preciso selecionar e dedicar a atenção ao que se elegeu como foco de conhecimento.

Portanto, a seleção é fundamental. Guitton resgata um pensamento de Napoleão:” Não é com um grande número de tropas, mas com tropas bem organizadas e disciplinadas que se obtém êxitos na guerra.”

Implica nas seguintes regras para o trabalho intelectual:

  1. saiba selecionar;
  2. não procure entender tudo; e
  3. agarre-se a um só ponto e gire ao seu redor.

Guitton ressalta a importância daqueles horas do dia em que realmente conseguimos dar atenção ao que queremos aprender ou escrever. Ele critica fortemente a escola moderna ao prender o aluno cada vez mais em sala de aula, em horas que pouco aproveita, quando só aprendemos de fato quando estudamos, com a atenção devida. A preguiça nos leva à distração, a querer fazer tudo ao mesmo tempo. É preciso esforço para realmente se dedicar. Segundo Payot: “o tempo do verdadeiro trabalho é curto”.

Outra importante distinção ele faz entre trabalho e ocupação. Só o primeiro exige o enorme esforço da atenção para o estudo. O segundo, muito próprio de nossa atividade laboral, nos exige nosso tempo e atuação, mas pouco de nosso intelecto. Só o primeiro, diz ele, merece ser chamado de trabalho.

Ele não é rigoroso ao ponto de defender que o intelectual tem que ter um local isolado, sem distrações, para desenvolver seus estudos. Lembrando de vários casos famosos, afirma que para muitas pessoas o desfavorável é capaz de contribuir, um certo ruído cotidiano pode ser para muitos um fator de concentração.

“As condições mais favoráveis nem sempre são as melhores, tanto o homem desperdiça aquilo que possui em superabundância. Como explicar que os universitários, cuja ocupação é aprenderem a pensar e a escrever, produzam menos obras duráveis que estes amadores que escrevem à maneira clandestina de descontração?”

Em conclusão, o que importa mesmo é a atenção ao que se selecionou com sabedoria. As horas fatigantes sobre inúmeros livros pouco gerará de verdadeiro conhecimento. Quando vejo o que as universidades se tornaram, consigo compreender muita coisa que acontece na sociedade.

Taylor Swift e porque você deveria escutar Evermore com atenção

No apagar das luzes de 2020 (se é que acabou), a Taylor Swift lançou o disco chamado Evermore, o segundo durante a pandemia, já que em março havia lançado Folklore.

É impossível imaginá-la saltando no palco com as músicas que estão nestes dois albuns, mas particularmente no segundo.

O que temos é uma Taylor intimista, com letras reflexivas, melodias suaves e um tanto tristes. Ainda é cedo para saber se é uma guinada na carreira, mas num ano que ninguém fez praticamente nada que preste, o album surpreende bastante.

Basta reparar na capa, que mostra a artista de costas, contemplando uma paisagem de árvores. Para uma artista pop, não ter o rosto na capa de um disco é significativo.

Sempre achei que Taylor tinha mais a dizer do que fizera até então. Muitas vezes o pop é uma prisão para um verdadeiro artista, o que sempre achei que ela era.

Chesterton: O Homem que Sabia Demais

Horne Fisher é o homem que sabia demais. Não significa que seja um sábio, mas que sabia mais coisas que um homem normal deveria saber. A verdade não o tornou feliz, mas sim um pessimista. Pois ele contemplava toda maldade da natureza humana, mas não tinha uma resposta para ela que não fosse a resignação.

Nos diversos contos do livro, vemos geralmente o criminoso, alguém da alta classe, não ser punido pois era uma destas pessoas importantes demais para que sua autoria fosse revelada. Não se trata simplesmente de fugir da lei, mas pessoas que pela posição, e muitas vezes pela atuação, geraria mais mal do que bem sua exposição.

Fisher conhecia toda a alta classe britânica e revela muito da hipocrisia e o que se esconde atrás de figuras públicas muito admiradas, mas pelo que não são. O interessante é que estes criminosos tinham virtudes, não eram simplesmente demônios sobre a terra.

Fisher começa o livro pescando. Era um pescador, mas pescador de que? Quais eram seus peixes?

Seu pessimismo talvez seja o grande tema do livro. O que lhe falta para ter uma alegria de viver? Talvez o grande assunto do livro seja o grande ausente. A chave que abre a porta para uma vida mais plena, em que saber demais não seja necessariamente o maior dos problemas.

Pensamento

Esta semana almocei com um destes tipos bem curiosos, que encontramos em nossas vidas.

Um senhor, muito bem sucedido, que já começa a contemplar sua última fase da vida.

Em dado momento, comentou:

__ Estou um pouco desanimado, está tudo muito chato. Até mesmo os diretores que trabalham comigo. Todos querem ter razão e gastam uma enorme energia com isso. Eu já entrei numa fase em que eu quero não ter razão. No fundo, o que quero mesmo, é uma boa garrafa de vinho rosé!

Contra Ário

Ângelo chegou atrasado, como sempre. Frederico já estava no terceiro chope. Na televisão do bar passava um jogo do Campeonato Brasileiro, mas Frederico acompanhava distraído. Não era muito de futebol; assim como, aliás, o recém chegado. Ângelo sentou e fez sinal pedindo o mesmo que o amigo. Logo estavam brindando a mais um encontro.

Os dois reuniam-se quase todas as quartas. Ângelo era professor universitário e neste dia só lecionava nos dois primeiros horários do turno noturno. Frederico trabalhava de dia, também professor, só que no ensino médio. Morava ao lado do bar, o que tornava fácil ajustarem os horários.

__ Como foi a aula?

__ Excelente. A turma estava animada hoje, respondendo, o que sempre me anima. Discutimos estética em Kant.

__ Não sei como consegue, juro.

__ Conseguir o que?

__ Discutir Kant com um bando de semiletrado. Aposto que metade não consegue ler dois parágrafos de Kant. Aliás, reformulo. Não conseguem ler um editorial inteiro do Globo. Falo ler de verdade, claro, e não apenas repetir palavras mentalmente. São ignorantes.

__ Você exagera. Como sempre.

__ Eu? Esquece que seus alunos passam antes por mim? Eu vejo as turmas, ano após ano, só piorarem. E tenho que ensinar religião para esses bárbaros! Logo eu, que desprezo todas elas.

Os dois se conheceram na faculdade, na filosofia. Depois Ângelo fez mestrado, doutorado. Perderam contato por alguns anos, mas voltaram a se encontrar quase por acaso. Moravam relativamente próximos.

Ângelo já estava no segundo chope quando Frederico continuou.

__ E você ainda dá aula de catecismo aos sábados. Nunca teria paciência. Odeio crianças.

__ Mas você dá aula no ensino médio!

__ Por isso mesmo.

Ângelo sacudiu a cabeça. Ele era incorrigível em seu mau humor e sarcasmo. No entanto, a despeito do gênio, era um amigo generoso, disposto sempre a ajudar quando preciso.

__ O catecismo é uma terapia para mim. A responsabilidade é bem menor; sinto-me mais solto. Nem preciso acreditar em tudo que falo.

Frederico observava duas garotas que sentavam-se no balcão próximo. Ângelo nem pareceu notar e acrescentou:

__ Por exemplo, Jesus e essa tal dupla natureza. O que importa isso? Para mim tanto faz se ele era de fato um deus ou um homem, o importante é a mensagem. Quando penso a respeito, tendo a achar que ele foi um homem iluminado, um santo, mas o próprio Deus? Não sei.

Frederico olhava para ele com os olhos arregalados, sustentando a caneca no meio do caminho para sua boca.

__ Não importa? É sério isso?

__ Não creio que a questão seja relevante, só isso.

Frederico não bebeu o chope e colocou novamente a caneca na mesa.

__ Ângelo, você foi seminarista! __ exclamou horrorizado.

__ Que tem a ver?

__ Você é um católico! Tem que saber que toda estrutura da sua Igreja repousa na fé da divindade do Cristo, na sua dupla natureza. Que ele é Deus, na trindade! O que você está dizendo é uma heresia, uma das maiores da história da sua fé, é a volta de Ário!

__ Não exagere.

__ Não estou exagerando. Essa questão é tão importante para sua Igreja que vocês repetem toda missa que Ário estava errado. Toda vez que recitam o credo. Todo domingo vocês repetem que Ário estava errado. Ário estava errado. Ário estava errado!

__ A maioria dos católicos nem presta atenção no que rezam.

__ Pois deveriam! Isso é sério! Eu posso ser ateu, mas sem o credo não conseguiria nem respeitar sua religião. Olha, sem a divindade do Cristo, se ele foi apenas um homem, mesmo que perfeito, então nada do que ele disse importa grande coisa. Mais até, não haveria salvação. A idéia da salvação só se sustenta na promessa do próprio Deus, na figura do Cristo. Você não entende? Se Cristo é um homem, os sacramento não servem de nada, nem a salvação. E sem a salvação a Igreja perde sentido!

Ficou um silêncio na mesa. Ângelo a esta altura já estava irritado. Quem era o católico, afinal? Mudou de assunto, não queria perder a noite discutindo teologia.

Horas depois, quando Frederico caminhava para casa, lembrou de sua mãe, em seus últimos instantes, segurando um terço. Ela rezara tanto para que ele se convertesse, mas ele resistira. Não quis lhe dar esta satisfação. E agora, não fazia mais sentido abraçar a Igreja de Cristo. O problema é que ele era uma pessoa séria e sabia que se um dia se tornasse católico, seria para valer. Não poderia continuar vivendo a sua vida da maneira como fazia. Não poderia ser como Ângelo.

Entrou em casa em silêncio e não sem uma grande tristeza.

Andrei Rublev: meditando a beleza

Eu sempre acho que Deus fala comigo através das coincidências. Por exemplo, fazem alguns anos que tenho um filme do Tarkovsky na minha lista para assistir, mas entre uma desculpa e outra fui sempre adiando. Até que no sábado, lendo um discurso do Cardeal Joseph Ratzinger, que posteriormente se tornaria o Papa Bento XVI, em que trata da beleza, ele menciona, de passagem, a obra do Rublev.

Bem, se um dos meus heróis intelectuais faz referência a um pintos que é tema de um filme que está numa linha minha é porque Deus está me dando um recado sutil: para de enrolar e assista logo!

Foi o que fiz. Que filme belíssimo!

Não se trata de um filme biográfico tradicional, longe disso. Passando por episódios da vida de Rublev, quase como um guia, Tarkovsky faz uma meditação fundamental: como podemos produzir beleza no meio do caos?

É ou não é uma pergunta bem atual? Que aliás deve ter sido para o próprio cineasta, que filmou em pleno regime soviético, sendo logicamente censurado pelo regime comunista. Imagino que seu retrato dos tártaros não era muito diferente da política soviética de seu tempo. Assim como Rublev lhe serviu de veículo, talvez, para seus próprios dilemas.

O Homem Eterno: O Testemunho dos Hereges

Leitura de Domingo: Capítulo 4 da segunda parte de O Homem Eterno, de Chesterton.

Chesterton apresenta as principais contestações à Igreja do Cristo e afirma que todas são verdadeiras. Só todas estas coisas, o pessimismo, o asceticismo desumano, a condenação do mundo e do homem, a religião oficial, em suma, tudo que acusam a Igreja de ser é verdadeiro mas não se trata da Igreja. Estas coisas estão presentes nas heresias que surgiram nos primeiros séculos da cristandade, e a Igreja combateu a todos.

Para defesa da Igreja, Chesterton gostaria de chamar os hereges, pois estes seriam os primeiros a dizer que a a Igreja não é nenhuma destas coisas, pois eles foram combatidos por professarem exatamente estas coisas que acusam a Igreja.

Chesterton nos traz uma metáfora maravilhosa para o catolicismo. Ele é uma chave. O credo é como chave sobre 3 aspectos:

  1. é um objeto com uma forma. É uma filosofia de forma e inimigo da informidade. Sua utilidade está exatamente na forma que possui, caso contrário não conseguiria abrir a porta.
  2. é uma forma fantástica. Um ser primitivo que encontrasse uma chave perdida não teria a menor pista de sua utilidade, do que serviria. É um objeto perfeitamente arbitrário. Pouco importa se é bonita ou feia, ou ela encaixa ou não encaixa.
  3. seu formato é bastante elaborado. Com seus dentes e combinações, não pode ser feita ao acaso. Tudo parece complexo, só uma coisa é simples, ela abriu a porta.

Portanto, acusam a Igreja de ser tudo que ela combateu. Fica claro porque a Igreja sempre foi firme com as heresias. Se assim não o fizesse, seria confundida com estas coisas e perderia toda sua força de ser portadora de uma verdade. Assim como já acontece nos dias de hoje, onde seus críticos fazem uma imagem bem particular do que seja a Igreja para poder atacá-la, sem perceber que no fundo está dando-a razão, pois ela combate as mesmas coisas.

O Trabalho Intelectual, de Jean Guitton

Novo projeto de sábados: reler o pequeno livro de Jean Guitton, O Trabalho Intelectual. Guitton foi professor de filosofia na Sorbonne e dedicou-se a vida inteira aos temas da educação.

Capítulo I: Observando como os Outros Trabalham

Trata-se de um capítulo introdutório, onde Guitton apresenta o grande problema da falta de sistematização para os estudos. Desde criança somos submetidos aos processos educacionais, mas muito poucos dedicam-se a ensinar como se deve estudar para realmente aprender.

O trabalho intelectual exige duas qualidades contrárias: a luta contra a dispersão e um certo desprendimento em relação a este trabalho. Temos que ser sérios no estudo, mas não sérios demais.

A pedagogia moderna anula na criança o gosto pelo trabalho artístico, como se fosse uma exercício desordenado, colocando-as sob a tutela de horários, regras e hábitos.

Outro paradoxo é que aprendemos as lições que deveríamos aprender na infância na vida adulta, quando como professores ou como pais, retornamos ao contato com a educação infantil. Só aí podemos entender que muito do que nos ensinaram exigiam uma maturidade que só ganhamos anos depois.

Por fim, ele afirma que o trabalho intelectual tem relação com a espiritualidade. A modernidade separou estas duas coisas, e o ritmo que deveria ser quase litúrgico se tornou um ritmo das máquinas, próprio dos paradigmas da era industrial. É preciso uma visão integral do trabalho intelectual. Como dizia São Tomás de Aquino: “vela pela preparação, vigia os progressos , recolhe os frutos”.

Os Ícones de Rublev

Em 2002, o então Cardeal Joseph Ratzinger, escreveu um discurso chamado No Encontro com a Beleza, onde ele faz uma belíssima reflexão sobre o papel da beleza na revelação Cristã. Ainda vou falar muito sobre este texto, mas no momento chamo atenção para uma breve referência que ele faz.

Trata-se do pintor russo medieval Andrei Rublev, que viveu nos séculos XIV e XV. Rublev ficou famoso por seus ícones cristãos, que decoravam as igrejas bizantinas. Ratzinger o cita como um dos grandes exemplos de beleza, que transcende os padrões estéticos da Grécia pois nos abre para uma nova realidade, uma ligação com o que está além.

Tem um filme sobre Rublev que está na minha fila para assistir faz tempo. Acho que chegou a hora. Sempre procuro obedecer estas coincidências que a vida nos coloca. Muitas vezes é uma intervenção divina.

Batismo, Sec XV