O Trabalho Intelectual: uma maravilhosa analogia

Prosseguindo o projeto de relar, aos sábados, o precioso pequeno livro de Jean Guitton, O Trabalho Intelectual. O Capítulo 3 chama-se O Esforço Profundo.

O ponto de partida são as imensas distrações que ameaçam o trabalho intelectual sério, seja ele de qualquer natureza. Para superar estas distrações é necessário o tal esforço profundo, mas não é só isso.

O trabalho intelectual é um vai e vem entre o fato e a idéia, entre o particular e o universal. O fato só tem realmente valor quando está iluminado por uma idéia e a idéia só tem seu valor quando se “encarna” na realidade. Perceber esta relação é fundamental para quem se dedica a entender a realidade e expressar este entendimento.

Um dos problema, nos alerta Guitton, é que a preguiça de pensar nos pode levar a nos manter na superficialidade. Não adiante entender Platão simplesmente lendo tudo que ele escreveu e o que escreveram sobre ele. É preciso identificar as citações mais frequentes, os textos fundamentais e se aprofundar neles. Os restante se dará a partir deste entendimento profundo, do conhecido para o desconhecido. Guitton condena o conhecimento do tipo enciclopédico e termina o capítulo com uma maravilhosa analogia.

Supondo que desejemos entender um círculo. A forma que aprendemos na escola, da superfície, é percorrer toda a circunferência, muitas vezes. Tudo nos parecerá tão diferente e pouco entenderemos no círculo em verdade. Já o pensador profundo, ficará um tempo sobre um pedaço do círculo e caminhará pelo seu centro, entendendo o raio, ou seja, o princípio que forma o círculo. Terá então condição de traçar o círculo por si mesmo e tudo lhe parecerá coerente e unificado.

O esforço profundo é justamente buscar este centro, buscar os princípios de qualquer conhecimento ou ciência.

A ordem no homem

Na Suma, São Tomás tratando da graça no primeiro homem, nos dá a receita para a ordem no indivíduo:

  1. A razão se sujeita a Deus
  2. As virtudes inferiores se sujeita à razão
  3. O corpo se sujeita à alma

Considerando a formulação de Platão que a sociedade é o homem escrito com “h” maiúsculo, temos, por dedução, a fórmula para a ordem na sociedade.

A mulher adúltera e as redes sociais

Não sou contra as redes sociais, até porque as utilizo bastante, para diversos fins. No entanto, não podemos ser ingênuos. Ela tem um ladro negro, um outro lado da moeda. Ela facilita muito a formação de turbas, especialmente quando dirigida contra um bode expiatório. Todos nós somos constantemente incitados a participar de uma turba destas e linchar uma pessoa, que muitas vezes é até inocente do que a acusam.

Na Bíblia tem uma estória famosa em que os fariseus levam a Jesus uma mulher pega cometendo adultério. Uma turba está pronta para apedrejá-la até a morte. Eles querem que ele sancione a pena ou que se coloque contra a turba, podendo até ser linchado junto. E o que faz Jesus?

Começa a fazer desenhos na areia. É a única parte na Bíblia que ele escreve alguma coisa. Não sabemos o que era, se são desenhos ou palavras. O que ele faz de fato é não participar da turba. Ele se recusa a linchar a mulher, mesmo ela sendo culpada de um crime previsto na lei mosaica.

Depois, diante do espanto de todos, faz aquela afirmação definitiva e impressionante: aquele que não tiver pecados, que atire a primeira pedra.

Deveríamos meditar muito sobre esta passagem ao utilizarmos as redes sociais.

As instituições não existem no vácuo

As instituições podem viver somente se sustentadas por convicções fundamentais comuns e se existe uma evidência de valores que fundamentam a sua identidade (…) É deste modo que uma instituição se torna uma carcaça vazia e vai à ruína, mesmo se exteriormente continua poderosa e dá a impressão de estar apoiada em sólidos fundamentos.

Joseph Ratzinger

Li este trecho ontem, quando terminava um dos pequenos grandes livros de Ratzinger, também conhecido como Papa Bento XVI, chamado Como Ser Cristão na era Neo-pagã. O então cardeal, os textos são antes de seu papado, trata de uma questão bem específica, da reforma na instituição Igreja para enfrentar a crise do cristianismo no mundo atual. Um cardeal argumentava com ele que as mudanças deviam começar pelas instituições e não, como defendia Ratzinger, pela mentalidade dos fiés e sacerdotes. A tese do outro cardeal é justamente a de utilizar as instituições para mudar as pessoas, o que sempre considerei bem problemática.

Para Ratzinger, as instituições não possuem vida própria, não existem no vácuo, por mais que demonstrem uma aparência externa de fortaleza. Nãos e trata apenas das pessoas que constituem a instituição, mas da forma como ela é percebida por todos, de dentro e de fora. Existem valores que a fundamentam, que a sustentam. Quando estes valores desaparecem, ou deixam de ser amplamente compartilhados, ela se torna “uma carcaça vazia e vai a ruína, mesmo que exteriormente continua poderosa”.

Achei bem apropriado para o momento que vivemos no Brasil.

Conservadores sem prudência?

A estratégia militar nos ensina que quando um inimigo é indiscutivelmente superior, o confronto direto é uma marcha para o suicídio. Só dará ao adversário a chance do esmagamento, da solução rápida do conflito. Só se utiliza esta estratégia quando se tem superioridade de forças, pois mesmo no equilíbrio, já nos ensinou a Grande Guerra, ela é ineficaz.

Também nos ensina a política que o temperamento, vejam bem o termo, temperamento!, pois o temperamento conservador tem como virtude fundamental a prudência. Não significa medo, covardia. A prudência aqui tem o sentido clássico de sabedoria prática, de escolha adequada dos meios para realizar os objetivos propostos pela inteligência. Por isso também se liga à noção de sabedoria. Seria esta, na visão dos antigos, a virtude fundamental da política.

Espanta-me, portanto, que uma parte da chamada nova direita se caracterize pela falta de prudência e temeridade. Utilizando os meios típicos de quem dizem combater, partem de peito aberto para o matadouro, como se imitassem um martírio, esquecendo que o verdadeiro mártir não procura o sofrimento, apenas enfrenta-o com coragem se não tiver oportunidade de sair de sua situação (recomendo vivamente o filme O Homem que Não Vendeu sua Alma).

Toda vez que vejo alguém batendo o peito para dizer que é o conservador de verdade, algo me inquieta. Ainda mais quando o sujeito deseja ardentemente o confronto. Por que isso?

Vivemos um tempo em que os revolucionários, se é que ainda cabe esta palavra, os progressistas, dominam amplamente a vida cultural e política em praticamente todo mundo ocidental. Seria hora, ensina a estratégia, de fazer a chamada aproximação indireta. Movimentos inteligentes, calculados, para atingir os pilares de sustentação da ideologia dominante. Coisa que tem gente fazendo muito bem e que, graças a Deus, não é notado pelos fanáticos. É um processo longo, mas não tem como ser de outro jeito. Não adianta achar que é um revolucionário com sinal trocado e que amanhã o mundo vai acordar diferente. Isso chama-se fé metastática e trata-se, no fundo, de uma feitiçaria (ver Eric Voegelin, que tratou do assunto à exaustão).

Não significa que não possam ter movimentos bem calculados de confronto, mas tem que ser na hora certa e bem cirúrgico. Não pode ser no tipo metralhadora giratória, atacando a tudo e todos. A histeria, definitivamente, não pode ser um recurso de um temperamento conservador e sim a prudência, não por acaso chamada de a rainha das virtudes.

O Homem Eterno: O Resumo deste Livro

Chesterton termina seu livro com um capítulo de conclusão, que intitulou “o resumo deste livro”. Ele deixa claro que sua intenção foi fazer um esboço da história e aponta seu principal contraponto, o livro da história universal de H G Well, que critica justamente como um esboço da história. Seria um livro preciso em fatos, com histórias muito bem contadas, mas com o problema essencial de estar errado pois ignora as questões essenciais que o bom senso nos permite ver se prestarmos atenção.

O homem não é uma criatura como as outras. Ele caminha sobre a terra como se fosse um deus do mundo inferior, mesmo que muitas vezes se comporte como um demônio. Muito se fala da semelhança dele com as demais criaturas, mas poucos refletem no principal, que somente ele é capaz de compreender esta semelhança.

A história do mundo se divide em duas visões. A partir de uma percepção comum que este mundo tem uma causa, há dois tipos de pessoas, ou visões. Uma que trata esta mente fora do tempo através de um espírito um tanto fofoqueiro. São lendas, folclores, mitos que contam histórias muitas vezes mentirosas, mas muitas vezes verdadeiras. O outro tipo é o que vê o mundo como um plano e tenta estabelecer um plano humano, são os filósofos, ou a atitude filosófica em relação à vida.

No meio destes dois grupos, de contadores de histórias e analistas destas histórias, surgem algo que parecia bom demais para ser verdade, exceto pelo fato de ser verdade, a boa nova do Deus que veio pessoalmente ao mundo e fundou uma Igreja. Seus seguidores, sacerdotes e fiéis, não se colocam como criadores de uma explicação ou uma verdade, mas mensageiros, que compartilham esta boa nova aos que ainda não a conhecem ou aqueles que não a aceitam. Esta é grande linha divisória que reduz a pó qualquer tentativa de religião comparada. A Igreja não acredita que defende uma teoria, mas sim um fato. Não cabe a ela criar este fato, mas tentar entendê-lo e passá-lo adiante.

Esta história surge como um loucura, inesperada por todos, mas continua firme por mais de 2.000 anos, algo por si extraordinário e maior prova de que se trata, essencialmente, de uma grande verdade. O mundo fica velho, mas a Igreja parece cada vez mais nova.

Durou por quase dois mil anos; e em seu seio o mundo teria sido mais lúcido, mais equilibrado, mais racional em suas esperanças, mais sadio em seus instintos, mas sereno e alegre diante do destino e da morte do que todo mundo de fora. Pois foi a alma da cristandade que nasceu naquele incrível Cristo: e essa alma era o bom senso.

O Homem Eterno

O Homem Eterno: As 5 mortes da fé

No capítulo 6, da parte II, Chesterton trata de uma das questões centrais do cristianismo. Não é que não possa ser derrotado; muitas vezes foi. Ele aponta cinco vezes que o cristianismo desapareceu da terra: na conversão ao arianismo de Juliano, com os albigenses, no humanismo cético da renascença, com Voltaire e seu racionalismo, com Darwin e o cientificismo que se formou. Algumas vezes, ele morreu assassinado, pela violência da perseguição; outras, morreu de velhice, por ter perdido sua alma.

A grande questão é que a Igreja foi fundada a partir de um Deus que renasceu, que sabe sair da tumba. Quanto o cristianismo parece ter perecido, ele retorna, e com surpreendente vigor. Quando os velhos desistem do Cristo, os jovens fanáticos surgem. O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão.

Na modernidade, muitos acreditam em uma direção para a história, discordando apenas no ritmo. Neste rio caudaloso das revoluções e progresso, não há espaço para a religião, a menos que perca sua alma e se torne um corpo moldável. Chesterton usa uma imagem maravilhosa para descrever o cristianismo, como um corpo que sobe o rio, que enfrenta esta correnteza. Ele nos lembra que um corpo morto não é capaz de resistir às correntes, apenas navegar como um barco de papel. Só uma coisa viva, como a Igreja, é capaz de nadar e vencer o rio.

Este capítulo me dá muito o que pensar sobre o momento que vivemos, em que a fé parece perecer pela velhice, especialmente na Europa. Só que na África e Ásia ela renasce com um vigor que pouco se viu na história. Apesar das perseguições, e martírios, ela só cresce. Eu não sei se o cristianismo vai nascer novamente no coração da Europa ou haverá uma invasão de fora, mas este espírito pessimista da Europa passará, as palavras do Cristo permanecerão.

Final de domingo com Neil Peart

Fazia tempo que queria ler algo do Neil Peart, baterista do Rush que nos deixou ano passado. Ele sempre foi o letrista da banda e pelas letras já era possível perceber que tinha o famoso talento com as palavras. Escolhi Música para Viagem, um livro de memórias em que ele associa suas viagens com as músicas que escutava. Peart adorava uma estrada, seja de moto ou de carro, costumava viajar dirigindo de uma cidade para outra nas turnês, sempre que era possível. Escolhia estradas secundárias, as mais vazias possíveis, para que pudesse contemplar a beleza natural dos locais que visitava.

Como imaginava, sua escrita é deliciosa de cativante. O primeiro comentário mais prolongado sobre um disco é sobre um dos favoritos de seu pai, Sinatra at the Sands, que escutou enquanto dirigia de carro durante uma turnê em 2003. Era um de seus favoritos.

Neste carnaval estou escutando alguns discos (sou daqueles que escuta mais discos inteiros que músicas soltas em listas, sorry). Eis o que anda rolando nos spotify, lps e cds da vida:

  1. Folklore e Evermore, da Taylor Swift. Quem me chamou atenção para estes dois albuns irmãos lançados durante a pandemia (um em julho e outro em dezembro) foi o Chico Scorsin e o Jota do podcast dos Náufragos (valeu, Gê!). Realmente os discos são surpreendentes. Bem diferente de tudo que ela tinha feito até então, com uma maturidade e um caráter introspectivo para realmente prestar atenção.
  2. The X Factor, do Iron Maiden. Aqui o culpado foi o Regis Tadeu com um vídeo sobre discos subestimados. Os fãs torceram o nariz para o décimo disco da banda por causa do trauma com a saída de Bruce Dickinson, mas o fato é que X Factor é bem melhor que os dois trabalhos anteriores. Aqui aparece pela primeira vez uma nova direção para o som da banda, que assume uma influência bem mais direta do rock progressivo dos anos 70. Nem a volta do Bruce mudaria este rumo, até porque seu estilo teatral combinaria demais com este som mais polido e desenvolvido. Parece que as músicas dos dois discos com Blaze foram feitas para esperar pelo retorno do Bruce.
  3. Cryptic Writings, do Megadeth. Outro da lista do Regis Tadeu. Este eu nunca tinha escutado e gostei bastante das primeiras audições.
  4. Future Games, do Fleetwood Mac. Este foi fruto do acaso. Tenho um box de 5 cds da banda, do início dos anos 70. Este album de 1971 inicia a transição do blues para o pop, já com a adição de Christine McVie nos vocais e Bob Welch. Peter Green já tinha saído e Jeremy Spencer também. Quem mandava no som e na guitarra era Danny Kirwan, um virtuoso, com um som delicado e melódico. Eu nunca tinha escutado este album e coloquei na sorte. Encantado com a primeira audição, enquanto lia o livro do Peart.
  5. Sinatra at the Sands. Este foi por causa do Peart e estou escutando-o enquanto escrevo estas linhas. Últimas músicas da noite. Disco maravilhoso.

O Homem Eterno: A Fuga do Paganismo

No capítulo V da segunda parte do livro, Chesterton nos fala do caráter único do cristianismo, de porque ele é ou a única religião ou algo diferente das chamadas religiões. Sim, os puristas da idéia de que todas as religiões são igualmente válidas ou que as culturas são igualmente meritórias sentirão uma revolta interior fervilhante, mas é a reação que só as grandes verdades provocam.

O mundo antigo greco-romano distingue claramente mitologia e filosofia. São duas camadas diferentes, que pouco se misturam. Até porque os diversos credos não tem caráter militante, não buscam se colocar ao outro como verdade, ou mesmo como a única verdade. Esta idéia de liberdade, argumenta Chesterton, longe de tornar o homem radicalmente livre, o aprisiona como um escravo.

A Ásia é o mundo velho do paganismo. É como a Europa, que é tão velha quanto ela, seria se não fosse a transformação do cristianismo. A Europa renasceu e daí veio seu frescor, sua dinâmica. A Ásia é o único inimigo real do cristianismo pois é o mundo pré-cristão, um mundo que termina de alguma forma no pessimismo.

O cristianismo é a resposta dos anseios da mitologia e da filosofia antiga. Ele responde ao desejo de romance da mitologia porque conta uma história. Ele responde ao anseio da verdade da filosofia porque é uma história verdadeira. Sua verdadeira crítica não é que não seja uma verdade, mas que seja uma verdade boa demais para ser verdade. E de fato é. O homem se torna radicalmente livre porque é livre para cair, para negar seu criador. É uma história que o homem não poderia imaginar porque o maior dos generais vai para guerra lutar como o menor dos soldados.