A Caminhada
Hoje caminhei pela primeira vez desde o início da pandemia, ou melhor, do início das medidas restritivas adotadas pelos diversos governos estaduais. No Brasil temos uma imensa dificuldade de chamar as coisas pelo nome correto e nosso jornalismo contribui assustadoramente para essa situação. Chamam de quarentena, lockdown, o que na verdade se tratou de decretos dos governadores impedindo o funcionamento de diversos setores do comércio, eventos que geram aglomeração e instituindo o home office para a maioria dos servidores públicos.
Aliás, com o advento da informática, praticamente tudo que a maioria dos servidores realizam pode ser feito remotamente. O grande problema sempre foi criar mecanismos para que ele realmente trabalhe e não transforme o concurso público em uma forma de renumeração com pouca contrapartida. No longo prazo, possivelmente muitos estariam em um segundo emprego para aumentar a renda. Eu não sei o que vem primeiro, a confiança ou a responsabilidade, mas estamos presos em um ciclo vicioso de irresponsabilidade e falta de confiança. O que se paga ao servidor público não é o produto do seu serviço, mas a disponibilidade de estar de 9 as 5 no local de trabalho, independente do que esteja fazendo. Muito se condena os servidores, mas acho que esta realidade é cruel com as duas partes e não sei até que ponto influencia muitos comportamentos pouco recomendáveis de alguns.
Enfim, caminhei. Nada muito ousado. Algumas voltas no quarteirão, com máscaras. Muitos amigos estão realizando atividade física normalmente e pode ser que minha atitude de só sair de casa para trabalhar e mercado fosse exagerada __ leio aqui e ali que a chance de pegar o covid ao ar livre é mínima __ mas me senti compelido a ser mais cauteloso. O fato de ter um amigo que por muito pouco não nos deixou pela doença, contribuiu para isso. Curiosamente, também passei o mês na leitura de A Montanha Mágica, do Thomas Mann, que se passa em um sanatório para tuberculosos onde a chance de cura era mínima também colocou um bocado mais de cautela em minha conta pessoal.
Vi algumas pessoas caminhando com cachorros, alguns idosos com acompanhantes dando alguns passos nos pelotis de alguns prédios, gente correndo, gente de bicicleta. Como já disse uma vez, o meu lugar favorito de Brasília são as calçadas que circulam as quadras, sempre arborizadas, um oasis de natureza deste horrendo conjunto de concreto. Não conheço um prédio que ache bonito na cidade; nem os originais e nem os modernos; nem mesmo as Igrejas, desfiguradas de sua importância simbólica.
Claro que fez-me bem sair para este passeio. No fone, escutei duas entrevistas em um canal da fuvest, um sobre o livro Montanha Mágica e outro sobre Cem Anos de Solidão; ambas muito boas, por sinal. Confesso que sempre espero o pior de acadêmicos, especialmente na área de filosofia e letras, mas os dois foram bem, embora a segunda professora tenha segurado um certo marxismo latente, talvez uma vontade de falar da teoria da dependência, aquele monte de bobagens que tornou famoso um certo Fernando Henrique Cardoso, um intelectual de terceira ordem que terminou presidente. Mas pensei pouco em política e muito em literatura, esta paixão que tenho. É uma pena que tenha pouquíssimas pessoas para conversar sobre o tema. Felizmente tenho um filho que lê os clássicos e com isso temos boas conversas. Vejo que ele tem influenciado os amigos; bom sinal. Mas infelizmente nunca conseguir influenciar os meus. Acho que sou mau propagandista.
A maioria das pessoas estava de máscara. O mesmo tenho visto nos poucos lugares que tenho ido, mas vejo relatos que não está sendo sempre assim. Dizem que o brasileiro não tem responsabilidade, que ignora as recomendações. Que recomendações? Os governos estaduais foram muito pródigos em cercear as liberdades, mas fizeram quase nada em termos de comunicação. Antes que joguem no colo do governo federal, essa responsabilidade é sim de quem está na ponta, nos municípios. Campanhas de conscientização poderiam ter sido feitas ao invés de usar prioritariamente a repressão. O curioso é que são governos progressistas, que enchem a boca para dizer que a educação é tudo. Só se for na ponta de um porrete. Continuo achando que fizemos tudo ao avesso. Começamos fechando o comércio ao invés de começarmos com a prevenção e feito um plano de escalada de medidas, com preparação prévia. Ao invés disso, decretos escritos nas coxas e muita licitação emergencial. Claro que isso está fedendo e tomara que tenha desdobramentos posteriormente. A impressão é que fizeram uma farra com o dinheiro que nem temos e que passaremos anos, talvez décadas, pagando este cheque especial.
Vivo constantemente entre momentos de otimismo e de pessimismo. Tem momentos que acho que a situação está melhorando e outros que vai piorar ainda mais. Vi um filme, excelente aliás, sobre uma ilha no canal da Mancha que foi ocupada por nazistas durante a II Guerra Mundial. Estou lendo o livro que deu origem ao filme, todo escrito por meio de cartas entre os personagens. Um deles escreve à escritora Julie: no início achamos que levaria meses, depois nos conformamos que seriam ano. Tenho medo de estarmos justamente nesta fase, de começarmos a perceber que como as grandes guerras mundiais, pode demorar muito mais tempo do que imaginávamos.
Parece que a caminhada foi ruim? Foi nada. Ela me deu aquela impressão que temos que continuar andando, marchando através da história. Deu-me disposição de escrever este texto, o que está sendo muito bom. Colocar pensamentos no papel sempre foi uma catarse, mas dificilmente consigo fazer neste tom mais pessoal. Espero repetir mais. E um dia poder escrever sobre a pandemia que passou.