
Outro dia um amigo me provocou em uma discussão de whatsapp: como eu explicava o Flamengo ter se tornado o time mais popular do Brasil? Segundo ele, quando o Flamengo ganhou seu primeiro título Brasileiro, em 1980, já era popular. Como eu explicava isso considerando que até a era Zico o time nunca tinha ganho nada de expressão que justificasse ter se tornado um time nacional, com torcida em todos os lugares do país. Para ele, o Flamengo era uma criação da rede globo durante o governo militar, provavelmente para ser o tal “ópio do povo” porque, claro, a globo é flamenguista.
Aí já tem coisa que não faz sentido. Se o Flamengo não era o time mais popular do Brasil em 1964, quando a Globo começou a se tornar hegemônica, porque ela teria escolhido justamente o Flamengo para ser o mais popular e porque ela faria isso? Não faz o menor sentido. Mas confesso que fiquei intrigado pela pergunta. O Botafogo dominou a década de 50, o Santos a de 60. E realmente, o Flamengo nunca tinha conquistado um título nacional até 1980. Como se formou a nação?
Provocado, fui tratar de pesquisar. A primeira resposta que encontrei é surpreendente. Para começo de conversa, achei um artigo no Jornal dos Sports, de 1971, em que Mario Filho levantava os motivos do Flamengo ser o time mais querido do país. Em 1971! A televisão não tinha penetração assim para em 2 ou 3 anos a Globo ter provocado este fenômeno. Continuei pesquisando e encontrei uma tese de doutorado em história, na UFF, do historiador Renato Soares Coutinho, que explica justamente esse fenômeno e pasmem, não tem nada a ver com a Globo e muito menos com a televisão. O período chave foram 5 anos na década de 30! E justamente em um período que o Flamengo não ganhou nada. O maior jejum de títulos cariocas do clube foi justamente nesta época. Foi a única vez que o Flamengo ficou 10 anos ser ganhar um título. Como aconteceu?
Aconteceu porque neste período, especialmente de 1933 a 1937, o Flamengo teve um presidente que fez uma gestão voltada não para ganhar títulos, mas para tornar o Flamengo o primeiro clube nacional do Brasil, vencendo as fronteiras regionais. A história é fascinante. Na década de 30, Vargas tinha chegado ao poder e a classe urbana trabalhadora tomava o protagonismo na sociedade brasileira. Até então, o futebol era uma prática elitista, voltada principalmente para os sócios dos clubes. A década de 30 foi quando as arquibancadas passaram a ser frequentadas por populares e não apenas sócios, formando a primeira profissionalização do futebol. Os clubes torceram o nariz para o que estava acontecendo, especialmente o Fluminense, que já disputava grandes jogos com o Flamengo. O Vasco construir naquela época sua aliança com os imigrantes portugueses, criando o símbolo de time dos lusitanos.
Foi em 1933 que José Bastos Padilha assume a presidência do clube. Padilha pode ser considerado um pai do marketing esportivo. Ele tinha uma visão que o governo Vargas tinha despertado nas classes populares urbanas o nacionalismo e acreditava que se o Flamengo se associasse a símbolos nacionais ele se tornaria o primeiro clube nacional do país e teria seu futuro assegurado. Os títulos seriam consequência deste fenômeno e ele se dedica intensamente em cinco anos a praticamente refundar o Flamengo. De um clube de regasta elitista da zona sul do Rio de Janeiro, a fenômeno popular de carácter nacional.
Um exemplo. Nos primeiros anos de governo, Vargas fez várias leis que “não pegaram” como ele mesmo dizia. Uma delas era cantar o hino nacional nas competições esportivas. Os clubes se recusaram e ignoraram. Deve-se lembrar que o governo ainda não era uma ditadura. Padilha percebeu como uma oportunidade de mostrar que o Flamengo estava ligado ao Brasil e levou uma banda para tocar o hino nacional em cada jogo, inclusive nas Laranjeiras. Criou uma série de slogans associando Flamengo e pátria como “Flamengo é o Brasil”, “Uma vez Flamengo, sempre…. tudo pelo Brasil”, “Flamengo o time da pátria” e assim por diante. Padilha apostou também com a interação com a torcida, criando diversos concursos para estabelecer símbolos e slogans para o Flamengo.
Em 1936, o Jornal dos Sports já usava termos como “massa” e “multidões” para se referir ao público do Flamengo. Os clubes torceram o nariz e começaram, como hoje acontece, a ridicularizar o carácter popular do clube, o que, como hoje, contribuiu para popularizar ainda mais o Flamengo. O Vasco foi o primeiro clube a aceitar negros como sócios, mas na década de 30 nenhum time do Brasil tinha tantos negros quanto o Flamengo, a começar pelo maior deles, Leônidas da Silva.
Padilha não viu o Flamengo ser campeão em sua presidência. Renunciou ao cargo em 1937, pouco antes do golpe que instalou o estado-novo no Brasil. Apesar de ser a favor do nacionalismo, não concordava com o fim das liberdades e em 1945 fez campanha contra Dutra. Nos anos seguintes à sua renúncia, o espírito continuava o mesmo. O Flamengo se dedicava em fazer o clube popular.
Para terminar, o rádio teve um aspecto importante neste processo. Na década de 30 começaram a transmissão de jogos de futebol. Ary Barroso e Mario Filho eram escutados no interior do país, pois a transmissão para Norte, Nordeste e Centro-oeste era a do Rio de Janeiro, então capital. O que estes brasileiros escutavam? Um clube fazendo questão de criar cada vez mais símbolos de cunho nacionalista. O tricampeonato carioca de 42-43-44 só veio sedimentar e impulsionar esta associação.
Em resumo: o Flamengo montou na década de 30 um projeto para se tornar popular e o implementou. Pode-se dizer que enquanto os outros clubes se dedicavam a ganhar títulos, o Flamengo queria ser popular. Todos conseguiram o que queriam. E não, a globo não tem nada a ver com isso.