Não é segredo que a vitória de Trump nas eleições de 2016 foi um duro golpe para Hollywood. Da mesma forma que no jornalismo e na academia, a desproporção em favor dos liberais (como os americanos chamam a esquerda) é muito mais acentuada lá do que na média da população. O ator Mark Wahlberg, uma exceção, disse ano passado que Hollywood vivia numa bolha e não tinha noção da realidade do país. Mas, é verdade? Vive realmente Hollywood em uma bolha? Vive uma realidade à parte?
Eric Voegelin e a segunda realidade
O cientista político Eric Voegelin (1901-1985) estudou a fundo o problema da segunda realidade, tomando emprestado um termo criado pelo romancista Robert Musil. Ele identificou o fenômeno em que determinadas pessoas, incapazes de aceitar o mundo em que viviam, seja por revolta ou por tédio, criavam um mundo paralelo baseado em algumas premissas simples, que não poderiam ser contestadas. Peço ao prezado leitor que repare no termo tédio. Voltaremos a ele, em breve.

Eric Voegelin
O mundo, tal como se apresenta, é a segunda realidade. As pessoas que não conseguem aceitá-lo sobrem de uma doença no nível espiritual, uma doença da alma (pneumopatologia). São doenças que não podem ser tratadas como psicológicas. O método de fazer a pessoa aceitar sua situação real pode ter consequências trágicas, como se verá.
O doente escolhe ou cria uma segunda realidade para viver, normalmente mais excitante e que confere um sentido a sua existência. Este fenômeno foi muito melhor descrito na literatura do que por cientistas sociais, que em geral não conseguem enxergar as coisas do espírito. Assim temos obras como O Homem Revoltado, de Camus, o Julien Sorel de O Vermelho e o Negro, e Raskolnikov em Crime e Castigo. Todos exemplos de segunda realidade. Mas é em Dom Quixote que Voegelin mostra o mecanismo em ação.
A Segunda Realidade em Dom Quixote
Don Quixote, entediado com o mundo em que vivia, criou uma segunda realidade em que é um cavaleiro andante. Sancho Pança, seu fiel escudeiro, vive na primeira realidade e enxerga os moinhos de vento enquanto Don Quixote vê gigantes. Sancho tenta fazer uma mediação entre as duas realidade, sem muito sucesso.
Em uma de suas expedições, Don Quixote vai parar em uma corte, onde já sabem quem ele é. Esta corte, entediada, resolve participar do jogo e finge acreditar que ele realmente é um cavaleiro famoso. Ou seja, ela mergulha nas segunda realidade. Um estranho fenômeno então ocorre; a corte se diverte tanto com a segunda realidade que tem cada vez menos desejo de retornar à primeira. Ela mesma começa a acreditar na estória que criou.
A rendição à segunda realidade é simbolizada também pelo próprio Sancho, que acaba por acreditar nas recompensas prometidas por Dom Quixote, como ser governador de uma ilha. Ele descobre que acreditar na segunda realidade é muito mais interessante que viver na primeira.
Então temos o cura. O despropósito de Dom Quixote o atinge pessoalmente. Ao mesmo tempo que consegue ver corretamente a loucura do cavaleiro, falta-lhe a compaixão necessária para lidar com a situação. Como o irmão do filho pródigo, quer ter razão e provar seu ponto. Ele não aceita a felicidade de Dom Quixote e não descansa até mostrar a ele sua loucura. O cura age como o psicólogo moderno, tentando fazer o doente tomar consciência de sua situação. O problema é que a doença é espiritual, algo muito além da ocupação do nosso bom médico.
Dom Quixote finalmente aceita a realidade, mas cai em profunda melancolia e morre. O retorno à primeira realidade não resolveu o problema que o fez negar o mundo na primeira vez. Temos então, na pena de Cervantes, os tipo: Dom Quixote, Sancho, a corte, o cura. Voltemos a Hollywood.
Florence Foster Jenkins
O filme de Stephen Frears conta a estória, baseada em fatos reais, de Florence, uma rica herdeira, patrona da música em New York da primeira metade do século XX. É interpretada por Marylin Streep, um dos símbolos da alienação de Hollywood apontada por Wahlberg.
Apaixonada por música, pianista na infância, ela sofre de sífilis desde os 19 anos, contraída do primeiro marido. Em consequência, perdeu o movimento de uma das mãos e não pode se dedicar ao instrumento, canalizando sua atenção para o patronato. Mas não foi suficiente. Ela toma aulas particulares de canto, sob aplausos de toda uma rede que a protege e a impede de ver sua incrível falta de talento. Há um motivo bem prático para manter a farsa. Ninguém quer que ela se desiluda com a música e feche seu generosos talão de cheques.

Florence e St Clair
Está criada, então, a segunda realidade, em que Florence é uma talentosa cantora amadora de ópera. Não se trata apenas de interesse financeiro. Como St. Clair, o segundo marido e principal mediador da segunda realidade, afirma ao pianista Cosmo, a vida de Florence é muito mais divertida e excitante. Novamente aparece o tédio como uma das razões para a segunda realidade. Como a corte em Dom Quixote, uma sociedade se forma em torno de Florence, pronta para bajular e aplaudir.
Cosmo é o Sancho Pança da estória. Ele tem perfeita consciência da inadequação da patroa, mas recebe muito bem para manter a farsa. É curioso que ele mesmo é um músico comum, sem talento especial, como exclamam atônitos os pianistas que aguardavam para um teste em que foram preteridos, sem serem ouvidos, por Cosmo. Florence não só era incapaz de cantar, mas não tinha ouvido para distinguir a boa música da trivial. O mesmo acontecia com a corte que a bajulava.
O padrão se repete. Quanto mais a segunda realidade dura, mas as pessoas acreditam nela. É o que acontece com a loira fútil, que não se aguenta na primeira apresentação de Florence, caindo na gargalhada, mas que aos poucos aceita seu papel e termina condenando o mesmo comportamento nos soldados que assistem ao espetáculo do Carnegie Hall. A rendição de Sancho se repete em Cosmo, que balbucia após o terrível espetáculo: “eu toquei no Carnegie Hall!”
O cura reaparece como o jornalista do Post, que pretendendo defender a verdade objetiva e faz uma crítica devastadora à Florence e sua corte. Também falta-lhe compaixão e quer apenas ter razão. Ele se julga melhor do que os outros, o que é sempre um grave pecado. Que o cura seja agora um jornalista, mostra a transição da classe intelectual no tempo.
A crítica do jornalista faz Florence retornar à primeira realidade, em que é apenas um velha senhora deformada e sem talento. Como Dom Quixote, ela não suporta a melancolia e morre. O despertar destas pessoas tem consequências trágicas. Como dizia T. S. Eliot, “o homem não é capaz de aceitar tanta realidade“.
Hollywood e o Oscar
O mergulho da segunda realidade de Florence e Dom Quixote se repete em Hollywood e sua corte. Artistas e profissionais do cinema abraçaram a visão liberal do mundo como poucos indivíduos o fazem, e chegam ao extremos de ignorar completamente a realidade econômica, a condição humana e a religiosidade do homem comum. Na segunda realidade de Hollywood, criticar um presidente significa um ato de coragem, milionários defendem o comunismo, abandonar Deus é um progresso e a paz é um problema simples de resolver. Por isso, Wahlberg está certo quando diz que Hollywood perdeu a sintonia com o povo americano. Em sua maioria, atores e diretores, não possuem idéia da realidade do americano comum e só o enxerga por esteriótipos.

A corte
Tudo isso culmina no Oscar, que é também um mecanismo farsesco de auto-referenciação. Não se premia os melhores, mas uma visão de mundo. Não quer dizer que não vença também filmes conservadores, mas esse conservadorismo tem que estar de alguma forma escondido para que a corte não o perceba. O que, convenhamos, não é muito difícil de fazer levando em conta o nível de compreensão desse pessoal.
Hollywood é Florence Foster Jenkins. Ela acha que está representando a américa. Não está e cada vez mais o divórcio é escancarado. Vejam o exemplo de Marylin Streep. Uma atriz talentosa? Sem dúvida!, mas não o suficiente para ter 21 indicações, colocando-a em uma espécie de patamar superior de qualidade, acima de todas as demais. Foi aplaudida de pé no Oscar deste ano. Como Florence e sua corte.
A questão que fica é o que acontecerá ao fim de tudo. Hollywood sobreviverá ao choque de realidade? Terá o mesmo destino de Florence e Dom Quixote? Talvez já esteja acontecendo. Cada vez mais quem realmente tem algo a dizer está migrando para a televisão e a internet. A segunda realidade está se desfazendo e o público das redes sociais seja o novo cura.
Finalizando, fico a pensar se não estamos cometendo o mesmo erro do cura e do repórter. Será que não estamos muito preocupados em ter razão? Será que mais importante do que fazer a pessoas cair na realidade não seria fazê-la ver que a realidade merece ser amada para só então desfazer o feitiço? De que adianta salvar um paciente matando-o?