10 Breves reflexões

10 Breves reflexões

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1

Outro dia, perguntaram-me: como eu poderia estar lendo um livro escrito no século XVI? Tratava-se de Shakespeare. Meu dileto amigo errou o foco de seu espanto. Eu não sou relevante; Shakespeare é. Deveria ter perguntado o que tem num livro do século XVI para ser lido até hoje.

2

A cada eleição espanto-me com a capacidade das pessoas em serem hipócritas e exigir dos candidatos o que elas próprias não fazem.

3

Vejo pessoas comuns atacando e defendendo a tal PEC 241. O que dificilmente vejo é quem leu a PEC. Defender e atacar o que não se conhece. Eis a modernidade.

4

Na escola sobram professores dando aula de literatura. Difícil é quem ensine realmente a ler.

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Somos um país de analfabetos funcionais. Não há nada mais significativo para nos descrever do que isso. E deixamos essa constatação completamente de lado ao tratar das coisas públicas. Até mesmo ao tratar da educação. Somos um povo que não sabe ler discutindo a pertinência de ensinar filosofia.

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A maioria das greves só consegue provar que boa parte dos trabalhadores é dispensável. Não creio que seja uma estratégia muito inteligente.

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99% do que professores, funcionários e alunos das universidades públicas falam publicamente é a mais pura hipocrisia. O 1% que sobra é burrice mesmo. Você reconhece quem tem alguma razão pela quantidade de pedras que recebe.

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Não há nada que me desperte mais medo que um político que desperte a paixão. O maior elogio que podemos fazer a um político é tolerá-lo.

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Em eleições, perdi muito mais que ganhei. E jamais votei positivamente; sempre foi contra alguém.

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Não se vota em candidato; vota-se contra um pior. Esse é o verdadeiro voto consciente.

Uma teoria da violência?

Uma teoria da violência?

Outro dia presenciei um assalto, coisa de trombadinhas, na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana. Uma cena normal no Rio de Janeiro, mesmo no horário de uma da tarde e dos pivetes terem saltado de um ônibus, arrancado a bolsa de uma mulher, e retornado para o coletivo, rindo. Todos que assistiram a cena, eu, pedestres e passageiros de ônibus, olharam tudo anestesiados, sem ter o que fazer.

Antes que digam que se trata de Rio de Janeiro, e se trata mesmo, não podemos esquecer que essa cena ocorre em toda grande capitais do país; mesmo a de médio porte. A única vez que um pivete me assaltou foi em João Pessoa, em 1987, também durante o dia na principal avenida da cidade. De certa forma o Rio é uma visão ampliada dos problemas do Brasil. Ignorar que, em maior ou menor grau, somos todos Rio, como se diz na gíria da moda, é fechar os olhos para os próprios problemas.

Eduardo Matos de Alencar, em artigo recente na excelente revista Nabuco, faz uma reflexão sobre a lógica da violência nas grandes cidades e questiona se é possível uma teoria geral sobre a violência, o nirvana de todo intelectual. Ele resume as teorias existentes em três grandes grupos. A violência como um fenômeno econômico, uma escolha racional entre custos e benefícios (escassez financeira); a violência como resultado de características individuais negativas, de valores morais que não foram desenvolvidos na pessoa (insuficiência cognitiva); e a violência como um produto da circunstância, de acontecimentos que superam a disposição do agente (circunstância aleatória que preme o indivíduo). O problema é que nenhuma dessas explicações dá conta de indivíduos que agem por gosto, praticam a violência porque querem, independente de benefícios econômicos, história individual ou circunstâncias. A teoria não consegue explicar a frase: “roubei por prazer”.

brasil2bdominado2bmarianoUma teoria geral só seria possível se olhássemos para a essência do ser humano, ou seja, para uma antropologia filosófica que desse conta de evidenciar as razões que nos levam a ser violentos. Para Eduardo Matos coube a René Girard, com sua teoria do desejo mimético, apresentar um caminho para percorremos. Para Girard a essência do homem seria o desejo mimético, a vontade de imitar o próximo. Queremos algo não pelo seu valor em si, mas por quem alguém que temos como modelo, muitas vezes inconsciente, também quer. O problema é que quando o modelo está demasiadamente próximo cria-se uma tensão, podendo gerar uma competição violenta pelo bem, especialmente quando o mecanismo se extende ao modelo e passam a se influenciar um ao outro. O mais importante é que o objeto acaba perdendo a importância em relação à disputa em si. A violência nasce dessa reciprocidade. Para Girard, essa violência só consegue se aplacar pelo mecanismo desenvolvido pelas religiões arcaicas do bode expiatório. Só a partir do sacrifício de um inocente, que recebe todas as culpas pelo conflito, que a sociedade pode continuar existindo sem se deixar consumir pela violência.

Examinando a correspondência da teoria mimética com outros campos da existência como a biologia, psicanálise e sociologia, chama atenção a percepção do mecanismo culpa/vergonha. Existem duas formas, defende Eduardo, de lidarmos com nossos erros: assumir a culpa ou sentir vergonha. No primeiro, assumimos a responsabilidade e se tivermos um mecanismo adequado de arrependimento, podemos continuar em frente. No segundo, o indivíduo sente que está sendo humilhado e que na verdade não tem culpa do que está acontecendo, acumulando revolta que acaba por explodir em algum ponto. Coube a um psiquiatra norte-americano, James Gilligan, apontar que existe uma constante no relato dos indivíduos violentos nas penitenciárias americanas: uma idéia de desrespeito ou honra ferida, o resultado de uma sequência de humilhações, cuja causa era atribuída à vítima. A principal consequência é a morte do “self”, a anulação do eu, tornando o indivíduo imune a considerações morais sobre seus atos.

Eduardo Alencar nos alerta que o papel que a vergonha e a culpa desempenham na produção da violência é causa necessária, mas não suficiente. Há mecanismos que dissipam a vergonha e humilhação como a capacidade de sentir culpa, para que a humilhação não apareça de maneira tão devastadora e incontornável e que o indivíduo possua meios não-violentos de salvar ou resgatar a sua autoestima.

O problema que vivemos hoje é que a modernidade, no seu espírito de revolta contra Deus, acentuou de maneira extraordinária o ressentimento. Especialmente nas áreas urbanas, os mecanismos que lidavam com o aplacamento dos esquemas de humilhação como a família, igreja ou outras associações estão ruindo fruto de uma expansão desorganizada e desordenada. A morte de Deus geram um vazio existencial que impede que a pessoa sinta culpa e, portanto, assuma responsabilidade pelos castigos que sofre ao longo da vida. Tudo se torna ritual de humilhação gerando uma forma de alimentação mútua com o ressentimento. Marc Angenot denominou ideologia do ressentimento a visão de mundo que se desenvolve a partir da vergonha e humilhação. O futuro para o ressentido não é uma abertura ou emancipação, mas um acerto de contas rancoroso com o passado. A modernidade liberta o homem dos grilhões da cultura para o jogar nos grilhões do desejo mimético.

Conservadores: alegria!

Conservadores: alegria!

Alguns conservadores tem o péssimo hábito de cultivar o mau humor. O atual papa, que confesso não ter muita simpatia, disse algo logo no início de seu papado que guardei: o cristão tem que ser, sobretudo, alegre. O Nobel de Dylan mostrou essa face ranzinza de muitos, inclusive de alguns por quem tenho a mais absoluta admiração, diga-se. Parece que a arte já foi consolidada, e nenhuma forma  moderna é válida. Só vale o que se chama de clássico.

Esse artigo de Fernando Escorsim coloca o ponto com mais propriedade.

Apenas retomo o que aprendi com Peter Kreeft e Mortimer Adler: para julgar temos primeiro que entender. Não estou convencido que:

1. composições musicais não possam ser literatura;

2. as composições de Bob Dylan não sejam dignas de ser chamadas de boa literatura.

Como já disse aqui, pouco conheço de sua obra. Passei a última semana estudando, e apreciando, o disco Blood on Tracks. Uma maravilha. Vejam esses versos:

 

People see me all the time and they just can’t remember how to act

Their minds are filled with big ideas, images and distorted facts

Even you, yesterday you had to ask me where it was at

I couldn’t believe after all these years, you didn’t know me better than that

(Idiot Wind)

 

Sundown, yellow moon, I replay the past

I know every scene by heart, they all went by so fast

If she’s passin’ back this way, I’m not that hard to find

Tell her she can look me up if she’s got the time

(If You See Her, Say Hello)

 

I was in another lifetime one of toil and blood

When blackness was a virtue and the road was full of mud

I came in from the wilderness a creature void of form

Come in she said, I’ll give you shelter from the storm

(Shelter From The Storm)

 

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Copacabana sitiada (ou quase)

Andando de taxi por Copacabana hoje pude constatar uma triste realidade: o bairro está tomado por marginais. Nem adianta dizer que sempre foi assim, pois a coisa está em outro nível. Dá para perceber o clima tenso, carros de polícia passando, gangues andando pelas ruas sem a menor preocupação. Não temem mais nada. Moradores de rua também se espalharam pelas esquinas e praças.

O pior disso tudo é que não vejo perspectiva nenhuma de melhora. Acho que caminhamos para um desastre. Não algo isolado, como tantos casos que já aconteceram no Rio, de vítimas individuais. Dessa fez tenho a sensação que será diferente. Sinto uma tragédia de alguma proporção se aproximando na cidade e muitos amigos que ficam até ofendidos quando se fala mal do Rio estão quietos agora, concordando tristemente com um diagnóstico que sempre relutaram em aceitar.

Um amigo disse outro dia: o Rio de Janeiro é ruim, mas é bom. Acho que essa mentalidade tem que mudar. É muito conformismo. Não adianta falar de Belo Horizonte, São Paulo, Nova Iorque, Chicago. A coisa aqui tem outra dimensão, que ultrapassa estatísticas. Enquanto não se aceitar a verdade, por mais dolorida que seja, não teremos nenhuma chance.

O Rio de Janeiro é uma grande massa humana, pintada com manchas de sangue. 

Uma nota sobre o Nobel de Dylan

Uma nota sobre o Nobel de Dylan

Qualquer prémio está sujeito a injustiças, o que volta e meia rende boas discussões. Não sei bem por qual motivo, o Nobel possui um nível de credibilidade maior, e alguns o crêem incontestável. Discordo, pois qualquer obra submetida ao julgamento humano pode gerar erros e injustiças. Só isso seria suficiente para nos fazer desconfiar de qualquer prêmio. No que se refere ao Nobel, duas categorias são particularmente polêmicas, pela alta subjetividade, os Nobel da paz e de literatura.

Sobre o Nobel da paz deste ano, acredito que o povo colombiano se manifestou politicamente em plebiscito. Mais uma vez, privilegiou-se intenções sobre ações, um dos males da atualidade. O assunto da semana foi o outro, o Nobel de literatura conferido ao músico Bob Dylan.

Os puristas reclamaram. Como puderam? Um músico? Aí está o grande erro. O Nobel não foi dado a Dylan pela qualidade de suas músicas, mas a suas letras. A questão, portanto, precisa começar por uma questão: pode uma letra de música ser considerada literatura?

Dylan

A meu ver, qualquer forma de expressão escrita pode ser considerada literatura, desde que entendamos que ela pode ser boa ou ruim. A letra de uma música, por exemplo, pode ser uma poesia __ não significa que toda letra o seja, que fique claro. Elas podem variar imensamente de qualidade; sem prejudicar a música, diga-se de passagem. Basta colocar uma letra do Lou Reed ao lado de uma de Lady Gaga para perceber a diferença. É possível até que um mau músico seja um bom letrista.

Assim sendo, dizer que um compositor não pode concorrer ao Nobel de literatura pela qualidade de suas letras parece-me um preconceito. Por que não? A questão não é o gênero literário, mas sua qualidade. Portanto, para julgar o Nobel do Dylan, deve-se discutir não sua condição de músico, mas a qualidade de suas letras. E não adianta pegar um refrão conhecido para mostrar que é ruim, é preciso analisar pelo menos uma boa amostra das composições de um autor.

O que achei do Nobel? O problema é justamente esse. Conheço algumas músicas esparsas do Dylan e nunca tive vontade de me aprofundar. Seus fãs dizem que sua força está justamente nas letras e talvez seja por isso que sua música nunca tenha me encantado, por não ter prestado atenção no que ele dizia. Ou seja, não tenho condições de analisar a decisão dos sábios do Nobel por não conhecer a obra suficientemente. Não sei se fizeram bem aos premiê-lo, apenas acho que não se pode condenar a premiação, como tenho visto, pelo fato de ser um músico popular. Mostrem que suas letras são ruins, ou que não possui nada de extraordinário, e terão um argumento. Mostrem que há melhores, terão outro. Mas, por favor, pelo menos leiam seu trabalho!

De minha parte, é o que farei. Nos próximos dias vou estudar algumas de suas composições para formar meu juízo. Mortimer Adler ensinava que temos primeiro que entender, para só então julgar. Acredito nisso.

Presente, de Antonio Cicero

Por que não me deitar sobre este

gramado, se o consente o tempo,

e há um cheiro de flores e verde

e um céu azul por firmamento

e a brisa displicentemente

acaricia-me os cabelos?

E por que não, por um momento,

nem me lembrar que há sofrimento

de um lado e do outro e atrás e à frente

e, ouvindo os pássaros ao vento

sem mais nem menos, de repente,

antes que a idade breve leve

cabelos sonhos devaneios,

dar a mim mesmo este presente?

Hitler e os Alemães

No verão de 1964, Eric Voegelin proferiu uma série de conferências na Universidade Ludwig-Maximilian, em Munique. O tema foi o problema experiencial central do povo alemão: a ascensão de Hitler ao poder.

Como uma socieade pode aceitar ser liderada por um tipo com Adolf Hitler? Esse é o vídeo de apresentação das conferências e do livro Hitler e os Alemães. Na minha página do facebook,  Paideia, você acompanhará um curso completo sobre o assunto.

 

Mais um clássico do bardo: Sonho de uma noite de verão

Passei o fim de semana com mais um clássico de Shakespeare: Sonho de uma Noite de Verão. Não entendi ainda tudo que está na peça, até porque é impossível em apenas duas leituras. Trata-se de uma dessas obras para você estudar a vida inteira. Minha mente está viajando em interpretações possíveis, que anotei no meu caderno de leituras para refletir sobre elas, com calma, nos dias que virão.

Chamou-me atenção a existência de três grupos distintos: os atenienses, os seres

Oberon, Titania and Puck with Fairies Dancing circa 1786 by William Blake 1757-1827

Oberon, Titânia, Puck e fadas. William Blake, 1786

fantásticos e os mecânicos (trabalhadores manuais). O que representam? Há uma certa incompreensão com a presença dos atenienses na peça e há versões que eles são substituídos, o que é uma bobagem. Há alguma razão para Shakespeare tê-los colocados, assim como o extrato da peça de Ovídio. Há um choque de culturas na peça, os gregos, os místicos e os científicos. A tri-partição da alma de Platão? As três eras de Comte? Se assim for, é curioso que a terceira era, da ciência, seja a retratada de forma mais ignorante, enquanto que a sabedoria está nas fadas. Mas tudo isso são direções para investigar, apenas idéias que me ocorreram.

Afinal, o que representa o menino roubado do rei indiano?

Outro aspecto é a força das imagens. Poucas peças geraram tantas obras de arte como pinturas, músicas, filmes, poemas e etc. É quase uma matriz para a imaginação de artistas de todas as eras.

Se é possível ver uma unidade na peça através da narrativa, muito mais complicado é encontrar o tema central; se é que existe. O amor e seus obstáculos parece ser um forte candidato, mas a simbologia e as imagens são tão impressionantes que sugerem muito mais significados e interpretações. Há um universo inteiro nessa peça e é plenamente concebível passar anos estudando cada passagem. É próprio dos sonhos o aspectos caótico, misturado a iluminações profundas. Como Puck sugere no final, como realmente diferenciar sonho de realidade?

Talvez o componente do mistério seja o grande elo entre os grupos e histórias e apenas um artista, do tamanho de Shakespeare, poderia criar obra com tamanha força e poder de imagens. Uma obra prima.

Midnight

Edwin Landseer, Titania e Bottom (1848)