Outro dia, recebi a seguinte pergunta:
Relendo o “How to read a book”, na pág 168, que fala sobre a solidez no julgamento do autor, deparei-me com a colocação do Adler de que o tempo pode resultar em acréscimo de conhecimento, mas pode redundar em retrocesso também. Como ex., ele cita a obra do David Hume (XVIII), o qual “ignorava a distinção entre imagens e ideias”. Por outro lado, os filósofos da Antiguidade “distinguiam com clareza o que os seres humanos sentiam e imaginavam e o que podiam entender”. Você saberia dizer exatamente onde estava a ignorância do Hume nessa questão?
Bem, a pergunta é intrigante e tive que pesquisar um pouco. Não tenho a pretenção de saber a resposta, mas formulei uma tentativa de entender a questão.
Dave Hume tem como núcleo de sua filosofia o cepticismo. Segundo ele, não podemos ter nenhuma certeza sobre casualidade. O simples fato de usar um taco de sinuca para bater em uma bola não significa que ela se moveu por causa disso. São dois momentos distintos que apreendemos pelos sentidos, o movimento do taco e a bola se movendo. Como um acontece depois do outro, tiramos a conclusão que um causou o outro, mas não significa que seja sempre assim. Como toda vez que fazemos o movimento do taco a bola se move, é bem provável que seja por isso, mas nada garante que da próxima vez será assim. Dessa forma, Hume conclui que não podemos ter certeza de nada, apenas probabilidades. Não podemos ter certeza nenhuma sobre o mundo real.
A observação de Adler diz que ele não entendeu algo que era claro e óbvio para os gregos: que existe uma distinção entre imagem e idéia. Platão acreditava que tudo que víamos no mundo eram imagens e que a idéia, ou forma, encontrava-se em outro mundo onde não estaria sujeita a mudanças. Era isso que garantia que soubéssemos o que era um cachorro quando encontrássemos um. O importante é que as imagens eram imprecisas e se transformavam com o tempo. Qualquer cachorro real é uma imagem de um cachorro ideal e qualquer cachorro real sofre alterações com o tempo, até a sua morte. Aristóteles também fazia essa distinção, mas com uma diferença. Não havia mundo das idéias, a forma estava em cada cachorro individualmente. Ou seja, tudo era a mistura da idéia e da imagem, que é o que captamos através dos sentidos.
Acho que Adler quer dizer que Hume observou bem que os sentidos nos enganam e que as imagens sofrem transformação constante. Por não saber a distinção entre imagem e idéia, ele acreditava então que tudo era imagem, ou seja, tudo era incerto. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a idéia era a essência da coisa, ou seja, sem ela a coisa deixava de ser a coisa. A idéia de cachorro é a cachorridade. O importante é que a essência nunca se transforma. Ou seja, existe algo permanente que nos faz humanos, uma humanidade. Gosto muito do termo condição humana para descrever essa nossa humanidade.
O perigo de não saber essa distinção é acreditar na possibilidade de transformar a essência, o que Eric Voegelin chamou de metástase, a crença na possibilidade de mudar a estrutura da realidade. Uma pessoa com fé metastática acredita que pode transformar o ser humano, ou seja, de criar o novo homem. Está aberto aí o caminho para a ideologia moderna.
Outro ponto importante é que os antigos gregos acreditavam que os sentidos eram a porta para o conhecimento, mas não eram o conhecimento. Ou seja, o conhecimento não estava nos nossos sentimentos e imagens, mas nas idéias, ou seja, nas essências. Por causa de Hume, Kant concluiria que as essências são inacessíveis à razão, uma afirmação muito importante para o mundo que vivemos.
Por fim, a observação de Adler, que não tinha ainda prestado atenção, é um alerta que o progresso não é automático. Se podemos desaprender coisas passadas, podemos regredir, o que derruba grande parte das ideologias, que se baseiam na idéia de um progresso constante (uma idéia de Hegel).
PS: Em An Intelligent Person’s Guide to Philosophy, Sir Roger Scruton, trata da conclusão de Hume que a liberdade não existe pois não podemos provar a casualidade. Segundo Scruton, trata-se de um truque retórico. Sem ter como provar que a liberdade não existe, ele inverte a questão e pede que se prove a existência da liberdade. Scruton argumenta que se o senso comum é de que somos livres, cabe a ele contestar e provar que não é assim. De minha parte, eu duvido que Hume ficasse na frente de um sujeito com uma pistola apontada para ele.
PS2: Tem um livro que está na minha lista, que muito provavelmente trata dessa questão. Trata-se de Socrates Meets Hume, do Peter Kreft. (http://www.ignatiusinsight.com/features2010/pkreeft_introtohume_july2010.asp)
PS3: Hume influenciou profundamente Kant. Considerando a influência de Kant no mundo moderno, é importantíssimo entender seu pensamento. Mas ainda não acabei Platão e Aristóteles.