Descobriram a prudência. Ou, não?

Pela primeira vez vi associações e pessoas que protegem os animais pedindo prudência antes de condenar alguém. “Temos que ver o contexto”, “ver o que é melhor para os animais”, “entender a situação”, “confirmar se isso aconteceu mesmo”, “ter cuidado antes de julgar alguém”.

Pergunto-me, se fosse um dos Bolsonaros a sacrificar uma cachorra, se teriam todo cuidado antes de condenar. O silêncio de todo esse pessoal, disse muito.

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Um romance primoroso: Os Noivos

Ainda vou comentar com calma o maravilhoso romance de Alessandro Manzoni, Os Noivos. Escrito entre 1823 e 1825, o livro trata não só das aventuras de Renzo e Lúcia, impedidos de se casar pelo desejo de um hedonista poderoso. Trata do verdadeiro sentido modelos_de_noivinhos_pb2520109da fé, do valor dos homens e da luta constante do bem contra o mal. Há diálogos impressionantes, daqueles para ler e reler várias vezes, e se admirar com tamanha clareza.

De todos os diálogos, o que mais me impressionou foi o travado entre o Cardeal e Dom Abbondio. Duas espécies completamente diferentes de religiosos; o retrato do que deve ser a coragem moral de quem se submete ao Cristo. Um romance de santos e demônios, competindo pela alma das pessoas mais simples. Um dos romances mais belos que já li.

Um clássico.

Uma pergunta sobre Hume

Outro dia, recebi a seguinte pergunta:

Relendo o “How to read a book”, na pág 168, que fala sobre a solidez no julgamento do autor, deparei-me com a colocação do Adler de que o tempo pode resultar em acréscimo de conhecimento, mas pode redundar em retrocesso também. Como ex., ele cita a obra do David Hume (XVIII), o qual “ignorava a distinção entre imagens e ideias”. Por outro lado, os filósofos da Antiguidade “distinguiam com clareza o que os seres humanos sentiam e imaginavam e o que podiam entender”. Você saberia dizer exatamente onde estava a ignorância do Hume nessa questão?

Bem, a pergunta é intrigante e tive que pesquisar um pouco. Não tenho a pretenção de saber a resposta, mas formulei uma tentativa de entender a questão.

Dave Hume tem como núcleo de sua filosofia o cepticismo. Segundo ele, não podemos ter nenhuma certeza sobre casualidade. O simples fato de usar um taco de sinuca para bater em uma bola não significa que ela se moveu por causa disso. São dois momentos distintos que apreendemos pelos sentidos, o movimento do taco e a bola se movendo. Como um acontece depois do outro, tiramos a conclusão que um causou o outro, mas não significa que seja sempre assim. Como toda vez que fazemos o movimento do taco a bola se move, é bem provável que seja por isso, mas nada garante que da próxima vez será assim. Dessa forma, Hume conclui que não podemos ter certeza de nada, apenas probabilidades. Não podemos ter certeza nenhuma sobre o mundo real.

A observação de Adler diz que ele não entendeu algo que era claro e óbvio para os gregos: que existe uma distinção entre imagem e idéia. Platão acreditava que tudo que víamos no mundo eram imagens e que a idéia, ou forma, encontrava-se em outro mundo onde não estaria sujeita a mudanças. Era isso que garantia que soubéssemos o que era um cachorro quando encontrássemos um. O importante é que as imagens eram imprecisas e se transformavam com o tempo. Qualquer cachorro real é uma imagem de um cachorro ideal e qualquer cachorro real sofre alterações com o tempo, até a sua morte. Aristóteles também fazia essa distinção, mas com uma diferença. Não havia mundo das idéias, a forma estava em cada cachorro individualmente. Ou seja, tudo era a mistura da idéia e da imagem, que é o que captamos através dos sentidos.

Acho que Adler quer dizer que Hume observou bem que os sentidos nos enganam e que as imagens sofrem transformação constante. Por não saber a distinção entre imagem e idéia, ele acreditava então que tudo era imagem, ou seja, tudo era incerto. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a idéia era a essência da coisa, ou seja, sem ela a coisa deixava de ser a coisa. A idéia de cachorro é a cachorridade. O importante é que a essência nunca se transforma. Ou seja, existe algo permanente que nos faz humanos, uma humanidade. Gosto muito do termo condição humana para descrever essa nossa humanidade.

O perigo de não saber essa distinção é acreditar na possibilidade de transformar a essência, o que Eric Voegelin chamou de metástase, a crença na possibilidade de mudar a estrutura da realidade. Uma pessoa com fé metastática acredita que pode transformar o ser humano, ou seja, de criar o novo homem. Está aberto aí o caminho para a ideologia moderna.

Outro ponto importante é que os antigos gregos acreditavam que os sentidos eram a porta para o conhecimento, mas não eram o conhecimento. Ou seja, o conhecimento não estava nos nossos sentimentos e imagens, mas nas idéias, ou seja, nas essências. Por causa de Hume, Kant concluiria que as essências são inacessíveis à razão, uma afirmação muito importante para o mundo que vivemos.

Por fim, a observação de Adler, que não tinha ainda prestado atenção, é um alerta que o progresso não é automático. Se podemos desaprender coisas passadas, podemos regredir, o que derruba grande parte das ideologias, que se baseiam na idéia de um progresso constante (uma idéia de Hegel).

PS: Em An Intelligent Person’s Guide to Philosophy, Sir Roger Scruton, trata da conclusão de Hume que a liberdade não existe pois não podemos provar a casualidade. Segundo Scruton, trata-se de um truque retórico. Sem ter como provar que a liberdade não existe, ele inverte a questão e pede que se prove a existência da liberdade. Scruton argumenta que se o senso comum é de que somos livres, cabe a ele contestar e provar que não é assim. De minha parte, eu duvido que Hume ficasse na frente de um sujeito com uma pistola apontada para ele.

PS2: Tem um livro que está na minha lista, que muito provavelmente trata dessa questão. Trata-se de Socrates Meets Hume, do Peter Kreft. (http://www.ignatiusinsight.com/features2010/pkreeft_introtohume_july2010.asp)

PS3: Hume influenciou profundamente Kant. Considerando a influência de Kant no mundo moderno, é importantíssimo entender seu pensamento. Mas ainda não acabei Platão e Aristóteles.

Um trecho de Zizek

Ainda não li o tal Zizek. Com tanta coisa boa ainda na lista, tenho que fazer uma enorme força para colocar autores, digamos, polêmicos nessa fila. Afinal, se nem terminei de ler tudo de Platão, como colocar qualquer outro?

O fato é que peguei para folhear um livro dele, na verdade uma entrevista. Um trecho que li foi um que ele fala do Livro de Jó. Diz Zizek que fontes na Igreja Católica (sempre desconfio quando alguém usa esse termo, “fontes”) disseram a ele que se fosse possível revisar a Bíblia, seria um livro que tirariam. Eu poderia observar que foi a própria Igreja que colocou-o ali, em primeiro lugar, mas talvez eu não o tenha entendido. Para ele, o Livro de Jó seria quase anti-católico pois evidenciava o fracasso de Deus.

Por coincidência eu tinha acabado de ler mais uma vez esse livro, que na minha opinião é um dos principais do Antigo Testamento, e confesso que não entendi onde ele quis chegar. Anti-católico? Como? Será que ele não percebeu que Jó representa o homem comum, que tem dúvidas sobre a justiça divina quando algo acontece de errado com ele? Que os sábios representam os tentadores que tentam colocar em sua mente que se algo de ruim aconteceu é porque ele fez algo muito grave? Que Iahweh aparece para dar uma esculhambada em todo mundo e colocar Jó e sábios em seus devidos lugares, embora demonstre toda simpatia por Jó por reconhecer nele a dúvida autêntica? E que o recompensa em dobro por Jó ter aceitado a providência divina e parado de tentar entender o que está além de sua compreensão? Que existe um mistério divino que ao homem é impenetrável, ou  seja, que nosso conhecimento é limitado? Que a justiça de Deus só faz sentido quando englobamos também o plano da transcendência?

O livro é tão rico que se pode observar Zizek em vários momentos. Como os sábios que tentam provar Deus por uma lógica eminentemente humana, o da justiça do aqui se faz e aqui se paga. Como satanás quer tirar do homem para mostrar que ele não é tem tanta fé assim. Como o Leviathan quer usurpar o poder que não é seu.

Gostaria de ver a cena que Iahweh apareceria para Zizek e exclamaria: “Cinge teus rins!” , ou em português de hoje, “coloque-se no seu lugar!”.

Luiz Sérgio Coelho de Sampaio

Finalmente terminei de assistir a série de vídeos sobre Antropologia Cultural desse Luiz Sérgio, de quem nunca tinha ouvido falar até ser indicado por um amigo.

Não posso dizer que entendi tudo de sua lógica hiperdialética (nome complicado, não é?), mas a coisa fez muito sentido em muitos pontos. E me fez entender um pensamento do Caetano! Em resumo, o vídeo é fascinante!

Vou precisar estudar mais.