Conversando com Deus

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Os bons filmes não foram feitos para serem vistos, mas revistos. O motivo é simples: não há como darmos atenção para todos os detalhes que eles nos revelam. Por mais simples que sejam as estórias há nuances que nos exigem mais atenção que somos capazes de uma única vez. Por exemplo, há uma cena em Toy Story 3, o melhor da série, que um Andy adolescente, que há tempos não brincava com seus brinquedos, diante do encanto de uma garotinha, senta com ela e brinca, como se fosse novamente criança. Os filhos são uma oportunidade de recuarmos no tempo para relembrar o encanto que um dia tivemos.

Outro dia, assisti com minha filha de 12 anos um desses filmes guardados em algum escaninho da memória: o Feitiço de Áquila. Ela ficou encantada, mas para mim, que assistia o filme depois de tanto tempo, o olhar era outro: prestava atenção justamente no que me escapara anteriormente. E o que despertou minha atenção foi o ladrão Phillipe Gaston. Ou, sendo mais preciso, do diálogo dele com Deus.

Chega a ser curioso que um filme que tem a religião, ou a sua corrupção, como um dos temas centrais, as meditações mais significativas sejam justamente dele. Phillipe é um ladrão simplório, que tenta se virar em um mundo dizimado pela fome, mas que tem uma característica singular: fala o tempo todo com Deus. Mas não só isso, é sincero em sua conversa. Ele não tenta enganar ou iludir __ sabe que está pecando __ só espera que Deus seja misericordioso com ele no fim. Em outras palavras, ele O respeita.

Quantos de nós somos capazes disso? Eu não tenho um diálogo como o de Phillipe. De alguma forma esse pensamento me incomodou. De que adianta ter fé se não vivemos de acordo com ela? Acredito sinceramente que Deus está sempre presente conosco; mas, se realmente creio nisso, por que não converso com Deus como ele? Por que não sou tão sincero?

A grande transformação que acontece no filme é justamente a do jovem ladrão. Aliás, um trabalho excelente de Mathew Broderick. O Phillipe que começa o filme não é o mesmo que termina. Se no início era cheio de ironias para esconder suas culpas, vai se tornando cada vez mais humildade a ponto de chegar à prece mais sincera. E o que o levou a tamanha transformação? Minha resposta está justamente na abertura da alma que o diálogo com Deus nos leva. Ao se deparar com o drama de Navarre e Isabeau, o jovem se deixa levar pela beleza dela, mas logo se rende ao amor entre os dois. É uma relação que transcendeu o entendimento que ele tinha do mundo. Ao invés de rejeitá-lo como alguma bobagem sentimental, como o espírito muito moderno faria, ele se abre a essa realidade e sua própria vida ganha outra referência. Pela primeira vez ele deixa de ser o centro da sua existência, o ego, para entender que faz parte de um mundo que o envolve, e quando assim procede torna-se coadjuvante, o que lhe confere uma dimensão mais verdadeira de sua própria existência.

Se no início do filme ele só se interessa em ter vantagens, no final está disposto a se sacrificar para garantir a felicidade daqueles que ama. Não um amor egoísta, mas o amor de amizade que tanto falava Aristóteles. Se não nos abrirmos ao diálogo com a transcendência seremos egos que só conseguem enxergar o mundo a partir dos benefícios pessoais. O caminho da salvação passa pela sinceridade, pela coragem de afirmar aquilo que é. Essa lição simples é o primeiro passo para nos guiar no mundo de hoje, que esconde a verdade com camadas de impostura, muitas colocadas por nós mesmos.