O caso da Portuguesa e nós como sociedade

O Campeonato Brasileiro não acabou, declarou o presidente do STJD. Talvez tenha razão, talvez nem tanta, mas o fato é que o episódio da escalação de um desconhecido jogador por um time tradicional, mas de pouca relevância atual, revela muito mais sobre o que somos como sociedade do que efetivamente sobre o esporte e explica porque estamos onde estamos.

Não vou aqui entrar em briga de torcida e rejeito qualquer discussão tola com torcedores do Fluminense, até porque duvido que exista um clube, uma diretoria, uma torcida, que não se comportasse da mesma forma, talvez de forma ainda pior, se fosse com eles. O Fluminense não é nenhuma exceção no panorama esportivo, ao contrário, revela o padrão comum do futebol brasileiro. Por incrível que pareça, a participação do clube em dois episódios no passado pode até prejudicá-lo hoje. Mas não é esse o assunto que me dispus a escrever. Interessa-me mais a ligação do episódio com nós, os brasileiros reais, que agem na história.

Chamou-me atenção a quantidade de pessoas que tiraram o regulamento não sei de onde e esfregaram na cara dos seus detratores. Está tudo aqui. Não vê? É no artigo X, sub-item XYZ. O Fluminense _ e repito, poderia ser qualquer outro time _ não tem nada a ver com isso. Quem errou foi a Portuguesa e deve pagar. Se não aplicarmos a lei como será o futuro? Questão de justiça.

Essa é uma das palavras que toda vez que é pronunciada publicamente me acende um sinal de alerta em algum lugar. Justiça. Ela se tornou um termo tão amplo, e vazio de significado, que pode significar qualquer coisa. Podemos dizer realmente, sem nos envergonharmos, que seria justo o rebaixamento de uma equipe que superou com dignidade tantas dificuldades, inclusive erros grosseiros de arbitragem, para conseguir uma vitória que praticamente valeu como um título, conseguir chegar na última rodada disputando um amistoso? Ah, mas está escrito! Está na lei! E o que não está escrito neste país que tem lei até para saleiro em lanchonete? Que não se pode levar dinheiro trocado para comprar pão porque um grupo de luminares decidiu que somos incapazes de comprá-los por unidade? Que estamos prestes a decidir que apenas um partido político vai poder receber financiamento privado? Acho difícil que algum brasileiro não tenha em algum momento infringido alguma norma. Vou contar uma coisa para vocês, os gregos, que apesar de antigos eram sábios, fizeram todo um gênero literário apenas sobre o conflito entre as normas escritas e a justiça. Chamava-se tragédia. Leiam Antígona e entenderão do que estou falando.

O caso afronta o bom senso do princípio ao fim. Tivesse a Portuguesa lutando pelo resultado e colocado um jogador irregular em campo, eu não teria absolutamente nada a dizer. Mas não foi isso que aconteceu e não se pode ignorar as condições concretas e particulares. A Portuguesa jogou um simples amistoso sem a menor expectativa de ganhar qualquer vantagem. Não havia nenhuma vantagem possível de ser ganha, o que revela que tratou-se de um descuido do clube e não um ação que visava fraudar uma competição. Puni-la com os 4 pontos é não distinguir os dois casos, é tratá-la como um clube que tivesse feito o mesmo com propósitos ilícitos. É tratar de forma igual duas situações diferentes. Se isso não cabe na definição de injustiça, conheço pouca coisa que caiba. São Tomás de Aquino ensinava que as normas são sempre gerais e que as situações humanas são particulares e concretas. Saber aplicar as normas gerais na situação real é onde se encontra a sabedoria.

Uma sociedade não pode ser melhor do que os indivíduos que a constituem, ensinava também o velho Platão. Mais que isso, ele acreditava que uma sociedade justa só poderia ser produto de indivíduos capazes de se amarem, de se colocarem no lugar do outro e fazer a pergunta de ouro: e se fosse eu no lugar dele? Você que bate no peito para dizer que a Portuguesa deve ser punida com o rebaixamento por um erro honesto, que não visava nem obteve nenhum benefício, até porque era impossível, consegue por um momento tirar sua camiseta de torcedor e se colocar no lugar da Portuguesa e dizer sinceramente que ela deve ser punida tão severamente? Para salvar sua cabeça vale colocar a do próximo em uma bandeja? Não se trata de ter pena da Portuguesa, mas aplicar a ela os princípios que gostariamos que fosse aplicados a nós, quando cometermos um erro de mesma natureza. Sim, está escrito. Mas nenhuma lei é perfeita e temos que ser capazes de julgar as particularidades. Não ter essa capacidade, achar que quando for a meu favor a lei deve ser aplicada doa a quem doer, é criar um impedimento para o funcionamento harmônico de qualquer sociedade. 

Se retirarmos todas as camadas de informações e formos na essência do problema, chegaremos a um ponto claro: a Portuguesa não visava e não obteve nenhum benefício com seu erro; além do fato que nenhum benefício era possível. Puni-la com o rebaixamento é aplicar uma pena desproporcional a qualquer dolo, contrariando princípios básicos não só do direito, mas do também do bom senso. Ao dizer que o problema é da Portuguesa e não tenho nada a ver com isso, estou fazendo uma declaração contundente sobre o meu papel na sociedade e da consideração que tenho com o próximo. Se a lei estiver do meu lado, independente do mérito, sinto muito, azar o seu. Uma sociedade que acredita que um dispositivo legal é superior a qualquer consideração ao próximo está fadada ao fracasso e não vai passar disso. A grande verdade é que muitas vezes para sermos justos temos que ter coragem de aceitar nossas responsabilidades com o próximo e não usar a lei como salvação para nossos erros.

Removidas as aparências, o que resta é um clube se defendendo de uma acusação mas sendo julgado por outra, como tantas vezes aconteceu na história e uma vez ficou registrada em uma célebre apologia. O crime da Portuguesa não foi escalar um jogador irregular, mas se impor em uma primeira divisão sem ter uma torcida que justifique; de ocupar o noticiário e o horário nobre com poucos se interessando pelo seu destino. Aí entra também uma grande hipocrisia. Se é assim, é melhor acabarmos logo com esse negócio de rebaixamento e fazer um campeonato com apenas os 20 times comercialmente mais vendáveis, como fazem os americanos com suas ligas profissionais. Mas não vamos abrir outro tópico de discussão.

Que não se façam com a Portuguesa o que não gostaríamos que fizesse conosco. Talvez seja essa a essência do que seja justiça. Temos sempre que pensar bem na hora de evocá-la. Podemos ser suas próximas vítimas.

 

(13 de dezembro de 2013)

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