Kennedy Alencar:
O título desta “Pensata” estava pronto desde a véspera. Seria “Supremo conservadorismo”.
No entanto, poucas vezes o jornalismo nos permite ver a História ser escrita com grandeza. O ministro Celso de Mello proporcionou um desses raros e deliciosos momentos.
Foram históricas as palavras de Celso de Mello ao final do julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) a respeito da constitucionalidade do artigo da Lei de Biossegurança que autoriza pesquisas com células-tronco de embriões humanos. O novo título deste artigo é uma singela homenagem ao ministro.
Com veemência, Mello disse ao colega Cezar Peluso que seu voto deveria ser contabilizado no time dos ministros do STF que fizeram ressalvas que tornariam inviáveis as pesquisas com embriões humanos no Brasil.
Na quarta-feira, Peluso fez restrições ao artigo 5º da Lei de Biossegurança. Ontem, quinta-feira (29/05), o ministro disse que seu voto foram mal-interpretado. Mas Celso de Mello fez questão de registrar para a História que a decisão de Peluso era diferente da dos seis ministros do STF que julgaram pela plena validade do artigo 5º. Parece um detalhe, mas não é.
O debate sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança foi permeado por uma dura luta entre cientistas e o lobby religioso. Os cinco ministros que optaram pelas ressalvas se afinaram com o conservadorismo bushista que impede que os Estados Unidos tenham uma legislação moderna a respeito de pesquisas genéticas.
Celso de Mello e outros cinco colegas do Supremo colocaram o Brasil entre os países com leis mais modernas sobre o tema. E ofereceram a milhões de pessoas que têm doenças graves ou deficiências físicas a esperança de um futuro melhor.
A própria Lei de Biossegurança já tem restrições para impedir que os cientistas brinquem de Deus. A legislação brasileira ainda é muito dura, mas foi um avanço institucional importante.
Vale registrar o nome dos seis ministros do Supremo que garantiram a separação entre religião e Estado. Foram eles: Celso de Mello, Carlos Ayres Brito, Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio de Mello e Ellen Gracie.Com ressalvas, o Supremo está de parabéns!
Reinaldo Azevedo:
Excelente o voto do ministro Gilmar Mendes. Como já disse, no mérito, ele não votou como eu gostaria. Mas, à diferença do que revelou o ministro Celso de Mello no julgamento de hoje ao menos, consigo conviver bem com a divergência.
Segundo Mendes, não há como declarar inconstitucional o artigo 5º da Lei de Biossegurança, mas lembrou que ele é amplamente insuficiente para dar garantias à sociedade de que não se cometerão desvios éticos nas pesquisas. E fez o elenco da legislação de outros países, onde há um órgão central que regula as pesquisas, com mais restrições do que a lei brasileira.
Mas não foi exatamente isso que chamou a minha atenção. À diferença dos seis ministros que rejeitaram sem reservas a ação de inconstitucionalidade — e, pois, assentiram, também sem reservas, com a Lei de Biossegurança —, Mendes considerou que os óbices que têm origem na religião, na filosofia — na cultura enfim — são legítimos e integram o nosso patrimônio. Afinal, quem acompanhou o voto de Celso de Mello ficou com a impressão de que se travava no tribunal a luta entre o Bem e o Mal, entre as Trevas e as Luzes. Não custa lembrar que ele chegou a citar Galileu Galilei, como se apenas uma matéria de crença estivesse em julgamento; como se, no tribunal, se engalfinhassem ciência e religião.
Estou entre os chatos que gostam de assistir a sessões do Supremo. Não me lembro de um ministro ter-se comportado antes com tanta arrogância, seja na exposição do voto, seja depois, no debate que travou com Cezar Pelluso. Uma lástima mesmo. Sei que devo ser voz isolada nessa consideração, já que o prestígio de que goza o ministro costuma colocá-lo acima de qualquer juízo crítico. Mas volto a Gilmar Mendes.
Nas suas considerações, lembrou, na prática, que as concepções científicas não se legitimam porque opostas às concepções religiosas, já que todas elas existem no plural. Daí que cabe à sociedade, com o conjunto de conhecimentos de que dispõe — e se entende que ele inclui os científicos e religiosos, então —, proteger-se dos excessos. Daí que tenha apontado a deficiência da lei brasileira, embora, reitero, no mérito, tenha rejeitado a ação de inconstitucionalidade.
E, então, estabeleceu-se uma diferença entre quem estava no tribunal “militando” e quem estava “julgando”. Considero que Celso de Mello e Ellen Gracie comportaram-se como militantes: ela, conforme já publiquei abaixo, teve o topete (o metafórico, além do real) de argüir o voto de Carlos Alberto Direito, tentando demonstrar a sua inconsistência científica. Arrogância desmesurada.
Na prática, Mendes votou com eles, sim, senhor. Mas não desqualificou ninguém. E procurou não enveredar pelos caminhos que aproximariam o debate das células-tronco da descriminação do aborto, a exemplo do que fizeram os dois Mellos, Marco Aurélio também — outro por quem tenho grande admiração.
Os defensores das pesquisas queriam caracterizar os adversários como Torquemadas ou inquisidores. Na verdade, os três votos plenamente contrários às pesquisas, aceitando a ação de inconstitucionalidade, foram de uma incrível serenidade, na forma e no conteúdo.
Nesta quinta-feira, os iluministas realmente iluminaram o debate: com a fogueira em que procuraram assar os que ousaram divergir.